sexta-feira, 31 de agosto de 2012

*Lei de Cotas nas universidades federais: passo gigantesco da educação brasileira


(Charge: Novaes)

Por Artur Pires

O assunto é de extrema importância, mas talvez tenha sido ofuscado pelo julgamento da Ação Penal 470, o famigerado “mensalão’, pela CPI do Cachoeira, pela greve dos servidores federais, pelas eleições municipais ou, ainda, pela novela global. Na verdade, o que tem saído na imprensa burguesa sobre a Lei de Cotas são sempre críticas, desaforos e inconformismos de representantes atuais da Casa Grande, em total descompasso com os anseios da Senzala. 

A mídia empresarial brasileira, endossada pela elite conservadora e por boa parte da classe média “metida a rica”, vomitou ferozmente todo o seu racismo e preconceito social após Dilma Rousseff – depois do papelão na greve dos servidores federais, até que enfim deu uma dentro, hein, presidenta? - sancionar a Lei de Cotas. “Vai piorar o ensino superior público brasileiro”; “acabou a meritocracia como critério de seleção nas universidades”; “o problema não é a universidade, mas o ensino de base”; “é um tiro no pé, pois só vai aumentar o racismo e o preconceito contra alunos de escola pública”, entre outros, foram alguns dos argumentos tacanhos reiteradamente explorados pelos arautos defensores da educação de privilégios travestidos de jornalistas e analistas políticos.

O que causou tamanho chororô nas hostes conservadoras foi o fato da Lei de Cotas reservar 50% das vagas nas universidades e demais instituições de ensino superior federais para alunos oriundos da rede pública, ou seja, 120.000 das cerca de 240.000 vagas nestas instituições federais terão de ser – obrigatoriamente - destinadas a estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Dentro desse universo de 50%, 25% serão reservados a alunos que possuem renda familiar mensal igual ou inferior a um salário mínimo e meio, valor hoje em torno de 933 reais. Os outros 25% se destinarão a estudantes negros, pardos e indígenas, de acordo com a proporção populacional dessas etnias em cada estado brasileiro. As universidades brasileiras terão quatro anos para se adequar à nova lei, sendo que em 2013 elas já têm a obrigação de reservar 25% das vagas aos cotistas.

Desta forma, está absurdamente claro que a lei, ao ombrear as condições de acesso à educação superior entre o ensino particular e o ensino público, entre o rico e o pobre, entre o branco, o negro, o pardo e o índio, representa um passo gigantesco da educação brasileira, no sentido de democratizar as oportunidades para todos, independente das condições econômicas e étnicas – que sempre serviram para aprofundar o fosso das desigualdades sociais e raciais -, a partir da perspectiva de igualar os historicamente desiguais. O pior cego é aquele que não quer enxergar isso!

De fato, as cotas não são a fórmula mágica ou o truque final para eliminar as iniquidades brasileiras, que são parte da nossa estrutura social, principalmente no acesso à educação superior, mas são, certamente, um dos meios mais eficazes de mitigá-las em curto e médio prazo, sendo extremamente necessárias no atual contexto, portanto. Decerto, as cotas não atacam a raiz do problema, o cerne da questão, posto que esta solução repousa em um amplo programa nacional suprapartidário de investimento maciço e de revalorização do ensino público, desde as creches, passando pela séries alfabetizantes, pelos ensinos fundamental e médio e desembocando, finalmente, nas universidades. Dentro desse processo, os professores precisam igualmente ser bem mais valorizados, com salários muito além dos atuais e condições de trabalho dignas. O método de ensino-aprendizagem também teria de ser revisto, com a pedagogia freireana assumindo papel primordial nessa nova ideologia educacional. Sem sombra de dúvidas, um largo salto no desenvolvimento crítico-analítico dos estudantes seria possibilitado.

Contudo, essa geração de brasileiros e a próxima e, provavelmente, a que virá após a próxima não podem mais esperar esse dia chegar. À Senzala, urge que o Estado brasileiro lhe dê condições objetivas e favoráveis de arrostar a realidade com esperança de melhores dias, dignidade e sonhos. O discurso vazio e amargo de “um dia as coisas se acertam” não pode ser mais digerido. Não há mais espaço para tolerar, admitir e encarar como natural da sociedade brasileira o privilégio de poucos em detrimento de muitos! Há mais de quinhentos anos o tapete vermelho está estendido à Casa Grande, enquanto à Senzala cabe tão somente o papel de recolhê-lo e guardá-lo ao final da festa. Chega! É preciso, sim, criar mecanismos de reparação de desequilíbrios sociais atávicos. É preciso,sim, dar chance aos que nunca a tiveram. Cotas já!

Texto publicado no Observatório da Imprensa  (edição nº 712) e no Brasil de Fato

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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

*Contos da Cidade: A sexta-feira da praça


(Fotos: arquivo pessoal)

**Artur Pires 

Quem já teve a oportunidade de aproveitar a sexta-feira à noite de uma praça da periferia de Fortaleza vai entender um pouco mais do que vou falar adiante. Quem ainda não experimentou, está perdendo tempo! Pracinhas da periferia possibilitam o contato com tipos diversos, que fogem aos padrões homogeneizados, daqueles que dificilmente encontraríamos em nossas escolas, cursos, faculdades, condomínios… Têm também muitos personagens dos quais se podem captar incontáveis estórias e causos. Para além disso, têm muita gente boa e acolhedora, na maioria dos casos. Nas andanças que fiz pela cidade desde 1994, ano em que este menino matuto do interior veio morar na capital, conheci algumas delas: as do Jardim das Oliveiras, do Luciano Cavalcante, do Tancredo Neves, do Tasso, do Canindezinho, da Serrinha, da Verdes Mares, do Jardim Violeta, do José Walter, do Vila Verde, das Cajazeiras, do Pantanal, da Manibura, do Eusébio, do Pôr do Sol, do Itaperi, da Lagoa da Parangaba, umas três na Messejana, entre outras, que não vou recordar no momento em que rabisco estas linhas.

Entre tantas, uma tem, para mim, significado especial: a da Cidade dos Funcionários. Aí vocês vão dizer: - Mas a Cidade dos Funcionários não é periferia. No que prontamente respondo: - De fato, não é agora, mas já foi.

Bons tempos eram aqueles, até o final dos anos 90, em que a Cidade dos Funcionários ostentava no peito com orgulho o sentimento de pertença à periferia. Ruazinhas estreitas de piçarra ou, quando muito, calçamento; vizinhos a compartilhar suas conversas em cadeiras estrategicamente colocadas no “mêi das calçadas”; os “campim” de futebol a cada esquina - na mesma proporção dos terrenos baldios; a mercearia do seu Jacó; a barraquinha de pastel da dona Franci; a banquinha de bombons e cigarros do Manel; o clube do Ipec; os bares do Chiquim e do Pelé; a castanhola gigante da rua próxima à BR-116; os pés de azeitona preta espalhados por todo o bairro; a pesca de tarrafa no lago Jacareí; as corridas de cavalo no prado perto do Cambeba; a “mata de Greyscow”; as mangueiras e jambeiros a perder de vista e, claro, a sexta-feira da praça!

Sim, a sexta-feira da praça era um acontecimento que envolvia não somente os frequentadores assíduos da Cidade dos Funcionários, mas incluía também aqueles que vinham das redondezas: Parque Iracema, Vila Cazumba, Tancredo Neves, Manibura, Flor do Mato, Piçarreira, Jardim, Luciano, Castelão, Cajazeiras, Tasso e afins. As barraquinhas de bebida e espetinho de gato pé-duro (de siamês era mais caro) ficavam apinhadas. As cadeiras não davam conta de tanta gente que vinha à praça neste dia à noite. O jeito, para muitos, era beber em pé mesmo. Pessoas diversas confraternizavam suas angústias e frustrações, desejos e paixões, amores e dissabores, anseios e devaneios, e a sábia filosofia de bar, ao som do “forró da favela” e de muito brega para acalmar. De vez em quando, aqui e acolá, rolava um reggae, a pedido dos integrantes da União dos Grafiteiros (UG), que sempre marcavam presença.

Eu, em plena adolescência tinindo à flor da pele, me deslumbrava com tudo o que via, vivia, sentia, algo próprio da idade. Gostava de observar o movimento e as pessoas. Um dos que me chamava atenção era o Pancada: corpo franzino, cabelos escorridos de índio, pele negra, sorriso largo. Parecia sempre feliz. Tinha essa alcunha não porque gostasse de bater ou de apanhar, mas pelo costume que tinha de escutar muito funk no rádio, no tempo dos bailes do Agito Jovem e da Superdance. De tanto ouvir o locutor dizer: “Solta DJ mais uma pancaaaaaadaaaaa....”,  incorporou o nome devido ao gosto pela sonoridade da palavra e nunca mais largou. Nunca descobri o seu nome. Alguns dizem que é Artur, mas tenho lá minhas dúvidas se ele é mesmo meu xará. A mim, pelo menos, nunca revelou.

Pois bem, o Pancada, assim como muitos jovens da Cidade dos Funcionários, era mais um da UG. Gostava de ficar na praça feito macaco, pulando de galho em galho; digo, de barraquinha em barraquinha. Passava pela do Marujo, depois se escorava na do Chicute, na sequência trocava um “dedim de prosa” na da Lôra, vez ou outra tomava um burrim na da Shirley, mas a que ficava mais tempo era na do Carmênio, pois a parte de trás da barraca funcionava como o recanto da “perdição” (ou seria da “achação”?), no qual se juntava com os demais para tomar cachaça e, indiscriminadamente, fumar o matinho verde que tanto apreciava. Revezava-se entre os tragos de Ypióca prata e os de erva. Ao fim da noite, o vi algumas vezes indo embora no “piloto automático”. Para quem não sabe, o “piloto automático” é aquele instinto de sobrevivência que todo bebum tem, mesmo em casos de completa embriaguez, para conseguir chegar são (quer dizer, “são” definitivamente não!), mas salvo em casa.

Mas a praça da Cidade tinha personagens mais interessantes, como o Pio, por exemplo. O Pio era um cara que adorava cachaça (não muito diferente dos outros frequentadores do local), introspectivo, espontâneo e que tinha muitos amigos imaginários. Nunca se concentrava numa conversa com os “pracianos” ao seu redor, mas desembestava a falar com pessoas que só ele via. Dizem que de louco todos nós temos um pouco. No caso do Pio, ele tinha muito. Um dia, desapareceu e não foi visto por muitos anos. Alguns davam conta de que tinha ido parar no Mira y Lopez, outros diziam que havia morrido, mas depois de muitos anos o encontraram na praça do Liceu, na Messejana, ainda com o mesmo costume de conversar com seus amigos invisíveis.

Entre as figuras carimbadas da praça, tinha também a Nêga. Pense, mas pense numa mulher danada que derrubava qualquer cabra metido a “bebedor” de cachaça. Perdi as contas das vezes em que, bebendo com a dita cuja, muito pinguço pediu penico enquanto ela continuava lá, tranquila e serena, como se não tivesse entornado dezenas de doses cavalares de pinga goela abaixo. Incrível! Sem dúvida, se houvesse uma competição mundial de bebedores de cana, a Nêga ganharia fácil, fácil.

Tinha também o Sodom. O que o cara tinha de gente boa tinha também de arengueiro. Às sextas-feiras, chegava por volta de 7 horas da noite na praça, manso, tranquilo, afeito a brincadeiras e jogando conversa fora. O problema dele era a bebida. Depois que derrubava uns dois, três litros de cana, queria, então, derrubar os outros. Toda, mas toda sexta-feira o Sodom arrumava uma confusão, para variar. E não importava se fosse um amigo de longa data ou um mero desconhecido. Aliás, acho que ele encrencava mais com os amigos, que, cientes da recorrência da situação, faziam o jogo do “deixa quieto”, do que com desconhecidos. Eu mesmo já fui um dos contendores que tive o desprazer de vê-lo cismado comigo. Como amigo, deixei quieto também – vale dizer que espertamente, já que ele era bem mais encorpado do que eu à época. 

A praça tinha ainda o Alma de Gato, o Zé Aurélio, o Fonfón (que era fanho, daí o apelido), o Batata e muitos outros camaradas que dariam um livro maior que a Bíblia e o Alcorão juntos. Logicamente, com histórias nada sacras.

Hoje, a praça da Cidade ainda respira a brisa suave das centenárias mangueiras que compõem sua paisagem. Ainda há, sim, a convergência diária de muitos moradores do bairro até lá, que se cruzam na quadra de futebol ou nas barraquinhas de bebida e espetinho de gato pé-duro (de siamês continua sendo mais caro). No entanto, as sextas-feiras, que já chegaram a concentrar centenas – quiçá milhares - de pessoas por estas bandas da cidade, hoje são só mais um dia da semana como outro qualquer. Novos tempos.

Para mim, o convívio com tanta gente, alguns tipos bem parecidos comigo, outros bastante diferentes, me trouxe aprendizados diversos e valiosos que carregarei sempre comigo, sem pieguismos. Um deles é que a Cidade já foi ainda mais legal quando era um bairro distante do corredor comercial e imobiliário de Fortaleza. Um outro é que eu adoro um gatim tostado! Se vier com farofinha então, huummm.....

*Texto publicado no Portal Vermelho
**Artur Pires é morador da Cidade dos Funcionários e frequentador da praça

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