quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Contos da Cidade: Ou vai... ou racha!


(Foto: Divulgação/Amberg Filmes – “Meninos de Kichute")


*Artur Pires

Não, o título acima decididamente não faz alusão a nenhuma necessidade iminente de decidir-se sobre algo, de optar por algo ou qualquer coisa que os valha. É nada mais do que um trocadilho fuleragem para introduzir o assunto que as próximas linhas abordarão: o futebol na Cidade dos Funcionários.

Racha é a maneira como milhões de brasileiros se referem ao ato de jogar futebol, bater uma bolinha. A Cidade dos Funcionários é um bairro pra lá de propício a esta atividade. Hoje nem tanto, mas até alguns anos atrás essa banda de cá de Fortaleza agrupava mais campos de futebol do que qualquer centro de treinamento de time da 1ª Divisão do Campeonato Brasileiro. Era um campo a cada esquina.

Foi assim que o bairro se desenvolveu: em volta dos inúmeros campos de futebol que dividiam com as mangueiras, jambeiros e cajueiros a composição da paisagem verde desta área. É por este motivo também que a Cidade e adjacências (Tancredo Neves, Tasso, Vila Cazumba, Cajazeiras) abriga (ou abrigou, uma vez que alguns já fecharam as portas) diversos times suburbanos da capital: Fortalezinha, Cearazim, Vasquim, Juventude, Atalanta, Asas, Cifec, Leão Azul, Tancredo Neves, Internacional, Nacional e UGFC.

Lembro das primeiras vezes que, ainda menino véi de 9 ou 10 anos, experimentei sair de casa para jogar bola em algum dos campos aqui da Cidade. Joguei, desde então, numa dezena deles: no da Pague Menos (era assim chamado porque ficava atrás da farmácia homônima), no do IPEC, no do Asas, no campo dos conjunto, no campo das azeitoneiras, no lago, nos trenszim, no campo do terreno do Antônio Caixeira (ganhamos inclusive um campeonato nesse campo, que nos valeu, como prêmio, uma galinha de capoeira - ainda viva!) e, obviamente, no campo de areia da praça (que, infelizmente, não existe mais).  

De geração após geração, o costume de bater racha na Cidade dos Funcionários é mantido. Sagrado! Atualmente, o racha rola às segunda e terça-feira na quadra da pracinha, a partir das 19h. E não só restrito à galera da Cidade. Vem jogador do Tancredo Neves, da Vila Cazumba, do Jardim das Oliveiras, do Vila Verde e das Cajazeiras. Vez por outra, até do Cambeba, da Messejana e de outras áreas mais distantes.

O racha, quando jogado num clima de respeitabilidade e harmonia (caso do da Cidade), é um agregador coletivo potentíssimo. Em torno de jogar futebol, se reúnem pessoas de diferentes bairros. Mas o grande lance – com o perdão do trocadilho - é que os encontros de segunda e terça na Cidade não se restringem tão somente ao ato de bater uma bola. Não! Há, também, nas arquibancadas da quadra toda uma interação maior que vai muito além dos “10 homens correndo atrás de uma bola”.  Tem o momento “feijão verde” (se é que me entendem), antes e depois do racha, tem as tirações de onda, tem a prosa descontraída, tem a convivência com pessoas de outras quebradas que, certamente, se não fosse pelo racha que as leva até a Cidade, nunca as conheceria.

E sabe por quê?! Porque para jogar futebol bastar querer – e, minimamente, saber chutar uma bola! Não importa se é preto, branco, pobre, rico, magro, gordo, baixo, alto; o ato de rachar numa quadra de praça é extremamente democrático (não falo aqui desses campos de aluguel que custam 60, 70, 80 reais a hora). Sem exagero e sem pieguice: a Cidade dos Funcionários (e seus rachas), assim como outros movimentos no meio da rua vivenciados nesse bairro ao qual tenho forte sentimento de pertença, me deu muitos amigos, me trouxe muita convivência com pessoas diversas, me garantiu aprendizados importantes para minha construção humana.  Rachar é, aqui nas áreas, compartilhar!

Como diria o poeta, se o racha não existisse, teria de ser inventado!

UGFC

O time atual da Cidade dos Funcionários, que tenho orgulho de fazer parte, o União dos Grafiteiros Futebol Clube (UGFC), formado e treinado no racha da quadra, com 90% dos jogadores nascidos e criados no bairro, foi vice-campeão do recente Torneio de Futsal Interbairros disputados no último final de semana no Canindezinho, bairro da zona oeste de Fortaleza.

Após vencer times do Parque Araxá, do Bonsucesso, do Jardim Jatobá, do Mondubim e eliminar o time da casa (Canindezinho), fomos derrotados na final pelo Venturoso, do Pio XII. Vale destacar que o torneio tinha 24 equipes e éramos o único time de toda a regional VI. O UGFC foi campeão do Torneio Interbairros do Canindezinho em 2011 e tentava o bicampeonato. Quem sabe em 2013. Na galeria de títulos do UGFC, consta ainda um torneio disputado em 2011 na Parangaba.

*Artur Pires racha nos campos e quadras da Cidade dos Funcionários desde 1994

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A violência legitimada e a seletividade midiática*


(Charge: Latuff)

Por Artur Pires

Anote aí: ainda hoje, em qualquer noticiário midiático da imprensa empresarial, de qualquer parte do Brasil, você, leitor/ouvinte/telespectador, tomará ciência de, no mínimo, mais um caso da violência urbana que assola o país inteiro. As consequências da guerra civil que impera no cotidiano brasileiro são diariamente retratadas na mídia burguesa, que conta ainda com a espetacularização e a “venda” dessa tragédia social nos programas policialescos.

Mas e as causas? Sim, e as causas dessa violência desenfreada? Ah, essas são olvidadas, ou melhor, propositalmente cortinadas, escanteadas, relegadas às sombras. Não é do interesse da mídia empresarial discutir minuciosa e abrangentemente os porquês da escalada da violência nas metrópoles do país, uma vez que se se propusesse a levantar um debate holístico em torno dessa questão, se chegaria à conclusão de que o maior responsável pela barbárie social brasileira é o modo de produção hegemônico baseado no capital, que aprofunda desigualdades e cria duas realidades sociais: a dos que têm e a dos que não têm. Ademais, esse mesmo modo de produção garante e assegura aos grupos midiáticos empresariais o oligopólio na produção, na distribuição e na veiculação da comunicação no Brasil.

A sociedade brasileira, inoculada pelo veneno deletério da imprensa venal, legitimou e, pior ainda, naturalizou a mais cruel das violências, a da exclusão. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões de brasileiros morando em barracos de pau, papelão e lona nas inúmeras favelas que grassam pelo país. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões de brasileiros dormindo em cima de papelões, embaixo de marquises e viadutos. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões – isso mesmo, milhões! - de brasileiros catando lixo para comer e sobreviver, disputando seu café-da-manhã, almoço e janta com gatos e cachorros em feiras, praças e calçadas. São milhões de brasileiros vivendo à míngua, sem o mínimo de dignidade. O mais aterrador de tudo isso: esses brasileiros são vistos diariamente nas ruas, sinais de trânsito e praças das grandes cidades, mas ainda assim permanecem invisíveis aos olhos dessa sociedade marcada por contrastes. Esta mesma sociedade que, quando muito, dá um trocado para o pretinho que faz malabarismos com bolinhas no semáforo e em seguida ruma para sua casa com cercas elétricas e um rottweiler à espreita do ladrão – e lá encastela-se – com a consciência tranquila de que fez uma “boa ação”.

À imprensa empresarial (leia-se Globo e sua filiadas em todo o Brasil, Folha de S.Paulo, Estadão, Veja, etc.), não é interessante abordar essa violência cotidiana e degradante que massacra milhões de brasileiros em favor de uma elite aristocrata de nariz empinado e de uma burguesia classe-mediana moralista e conservadora, cujo lema é “bandido bom é bandido morto” (lógico, desde que o bandido não seja o playboy que ateia fogo no índio nem aquele que se diverte espancando mendigos, gays e prostitutas) e que sonha em viajar para Miami para comprar roupas de grife baratas.

(Charge: Clóvis Lima)

A tragédia da exclusão, da desigualdade e da miséria é escandalosamente ignorada. Quando vem à tona, emerge sob a forma da criminalização da pobreza. Para a mídia burguesa, o bandido no Brasil tem cor, classe social e residência: é preto, pobre e mora na periferia. Ao modus operandi do Partido da Imprensa Golpista (PIG), é necessário construir este estereótipo do criminoso para, maquiavelicamente, sombrear a real causa da violência. É por isso que mídia e sociedade aplaudem quando a PM invade favelas e mata traficantes – muitos destes já rendidos - e, em maioria, extermina à revelia moradores que não têm participação nenhuma nessa guerra. É por este mesmo motivo que mídia e sociedade cantam loas à invasão de morros cariocas pela Polícia e pelas Forças Armadas. Afinal, essas favelas precisam ser “pacificadas”. Agora, dizem eles, essas comunidades “viverão em paz e libertas do tráfico”. Primeiro, paz sem voz, não é paz, é medo, já diria o Rappa. Segundo, libertas do tráfico? Ora, quem acredita nessa história da carochinha de que o tráfico acabou nas comunidades invadidas vai acordar no dia 25 de dezembro e olhar debaixo da cama o presente deixado pelo Papai Noel! O tráfico continua a existir abertamente, com a diferença de que agora a PM abocanha parte generosa do lucro da atividade, que antes era exclusivo aos traficantes. Mas isso, ah, isso não é motivo de pauta para o PIG. À imprensa burguesa, é bem mais pertinente aplaudir as UPPs e referendar a domesticação das comunidades invadidas aos padrões do status quo vigente.

A bem da verdade, enquanto se lê essas linhas, centenas – quiçá milhares – de brasileiros que moram em favelas, principalmente jovens negros, estão sendo mortos, seja por disputas entre gangues rivais, seja, em sua maioria, pela PM (a polícia brasileira é a que mais mata no mundo; mais do que o Exército fascista de Israel e o governo sírio juntos). É como diz o Racionais MC’s, “assustador é quando se descobre que tudo dá em nada e que só morre o pobre”. Esses jovens são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de uma violência legitimada pelo Estado e endossada pela sociedade. Mas ninguém os vê. Afinal, eles estão lá, no outro Brasil, aquele da miséria, da indignidade, da invisibilidade. A sociedade não se importa com o banho de sangue diário, com a tragédia cotidiana pintada em vermelho nas periferias brasileiras. Não há comoção nacional para esses casos.

Mas experimente um desses jovens se revoltar da sua realidade miserável e violenta, resolver arrostar o estado das coisas e partir para o confronto direto, armado. Experimente esse jovem assaltar e, pelo calor das circunstâncias, matar aquele mesmo playboy que ateia fogo no índio. Ah, certamente a mídia, com seu moralismo reacionário, dedicará editoriais e páginas inteiras de seus veículos para denunciar a violência no Brasil, usando, como exemplo, o caso do favelado que assassinou o burguês. O caso se transformará rapidamente em comoção nacional. Pessoas comentarão nas ruas, nas paradas de ônibus, à espera do metrô e, assim, a criminalização da pobreza será cada vez mais incorporada ao ideário e ao imaginário coletivo da sociedade brasileira.

(Charge: Latuff)

Vale deixar bem claro aqui que não se está defendendo a morte de quem quer que seja, seja ele rico, pobre, preto ou branco. Ou, muito menos, fazendo-se apologia ao crime. O que se traz à reflexão e se tenta desconstruir é esse discurso midiático altamente seletivo e moralizador, que filtra por classe social e etnia as mortes que quer mostrar, bem como seleciona, também por classe social e etnia, os “bandidos” que quer apresentar à sociedade. A morte de pobre apenas é destaque na imprensa convencional quando morrem, de uma vez só, mais de cinco. E sabe por quê? Porque chacina rende audiência, chacina “vende”. É triste, mas é a verdade!

Em suma, é imprescindível, portanto, que paremos de pensar a violência no Brasil presos ao padrão global, à la Capitão Nascimento, ou à desfaçatez e hipocrisia dos lixos televisivos policialescos. É imperativo que analisemos essa questão sob o prisma do profundo fosso social que aparta os inseridos a essa sociedade extremamente seletiva dos marginalizados por esse mesmo tecido social. Há, na verdade, bem antes dos atos violentos que tomamos conhecimento no noticiário, uma violência e uma omissão simbólicas, mas também reais, brutais e devastadoras, praticadas todos os dias contra o povo pobre - legitimadas pelo Estado e assinadas embaixo pela própria sociedade civil. A questão da violência em terras tupiniquins vai muito além do maniqueísmo "mocinho(a)" x "bandido(a)" que a mídia, a todo momento, nos impõe. Como diria a sabedoria popular, o buraco é mais embaixo! E como é!

Texto publicado no Observatório da Imprensa (edição nº 724)