quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Contos da Cidade: A mídia ninja e a mídia-molecagem

(Ilustração: Fábio Baroli)

Artur Pires

O Brasil passa por uma transformação muito rápida nos últimos 10 anos, no que diz respeito às formas e ferramentas para se fazer comunicação social – que nos dias atuais são múltiplas – e ao acesso às novas tecnologias. Hoje, cada vez mais consumidores procuram por celulares com câmeras digitais e acesso à internet. Difícil achar quem ainda tenha aquele aparelho 3310, da Nokia, que tinha uma lanterninha acoplada. E não faz muito tempo que ele foi lançado; talvez uns sete, oito anos atrás. Menos de uma década e o “bicho” está quase extinto. (Aliás, se alguém tiver ou conhecer quem tenha e queira fazer jogo…).

O fato é que a Cidade dos Funcionários, em Fortaleza, vivencia também estas mudanças. Se há três ou quatro anos quase ninguém tinha sequer um celular, hoje um bocado tem aparelhos com câmera, tocador de músicas e acesso à internet (vale dizer que me refiro somente aos frequentadores da praça e da calçadinha da fumaça, na Rua do T). Hoje, o dedim de prosa na quadra ou na calçada é quase sempre acompanhado de trilha sonora; é raro não ter algum DJ pronto pra soltar as pedras diretamente do seu celular. E, vou te contar, trocar uma idéia com uma musiquinha ambiente irada é massa!

A Cidade também tem seus ninjas em busca de boas imagens em situações de confronto. Nas manifestações recentes, o Tay, garoto da selva da Levada, fez vídeos exclusivos que nenhuma emissora de tevê chegou perto. Era a destruição do carro de uma… pois é, emissora de tevê. Filmou também a retenção de um ônibus pelos manifestantes, que depois saíram empurrando o cambão em direção à polícia. Revelou seu lado videomaker até quando fugíamos da emboscada que a PM armou nesta última manifestação. Num terreno baldio, que conseguimos pular após escapar às carreiras da cavalaria e do Raio – e nos depararmos numa rua sem saída (quer dizer, a única saída era pular o muro e invadir o terreno), ele ainda filmava, com direito a narração e tudo mais: “Estamos aqui, eu e o Artur, acabamos de pular o muro e caímos nesse terreno (uma pausa para uma respirada ofegante e… buuummmm!!!), eita, eita, corre, corre, os homi acabaram de soltar uma bomba dentro do terreno mah…".

O terreno era gigantesco, muito extenso e com o mato alto. Corremos sem parar até avistar um muro baixo, que dava para uma rua qualquer. Tay, com o celular sempre à frente do corpo, filmou toda a fuga. Depois, encontramos o Cachorrim, e já tomando umas cervejas numa pracinha do Renascer, lá no Dias Macedo – corremos até lá, mais perdidos que cego em tiroteio -, para comemorar a escapada, descobrimos que o terreno que tínhamos invadido era do Exército. “Ufa!”, passando a mão na testa e enxugando o suor, que pingava às bicas. Tin-tin!, saúde, cumpade, escapamos! (Golão de cerveja!) Quanto às imagens da fuga, ficaram uma coisa assim... à la Bruxa de Blair à moda cearense, tamanha era a adrenalina (com uma carga maior de medo do que o habitual) e o clima tenso da hora. Ô Mídia Ninja, ô Nigéria, acho que estão deixando passar despercebido, quem sabe, um talento nato pra parada de vocês.

No entanto, o que campeia mesmo por estas bandas é a mídia-molecagem: a arte de captar vídeos e fotos de momentos ridículos, cômicos, fuleiragens. O maior expoente “cidadeano” nessa arte é o Nielsen, que, antes disso, é o melhor contador de histórias que conheço. Interpreta, gesticula, imita a voz, refaz toda a cena do causo que conta como ninguém, sempre com a gaiatice que lhe é peculiar. É risada na certa! Além de ser ainda o narrador oficial do racha da praça, função que exerce com maestria - e putaria (não tem um jogador que ele não dê um apelido fuleiragem, não escapa um). Leva jeito na arte de fazer rir o Neguim da Benjamin. Talento made in Cidade! Imagina agora, na era do uai-fai e das câmeras nos celulares; o homem desembestou a fazer vídeos: não pode ver um bebim daquele preço, ou alguém da galera dançando uma musga ridiculamente, ou o Marco Doido imitando a cabeça de calango ou fazendo a cara do cão, ou um bate-boca banal e cheio de graça entre dois moradores:

- (Numa leve ironia) Cala a boca, Zé Cachacinha, a conversa não é contigo não -  disse o Lubinha, numa manhã qualquer embaixo do pé de nim na calçadinha, após o Plok se intrometer numa prosa.

- Vai tomar nesse teu c* - disparou de volta o Plok, enquanto lavava o carro do taxista do outro lado da rua.

- (Num tom bastante irônico) Zé Cachacinha, te acalma que tu pode ter um troço. Tá vendo, já tá é se tremendo todim porque ainda não tomou uma dose hoje!

- Vai se f*%#*, lombreiro.

- (Lubinha capricha mais ainda no tom irônico) Calma, Zé Cachacinha, que ainda vai sobrar um golim aqui pra tu –  mostrando e agitando o litro de cana já com menos da metade. E rindo debochadamente.

- Vai se f*%#*, pau no c*! Se eu quiser vou ali no Arnaldo e tomo uma (dose)! Dependo de tu não!

Não se assustem, o Plok é assim mesmo: late, late, late... Mas não morde. Tem esse jeitão seu Lunga, mas por trás da carranca e dos incontáveis palavrões você encontra um sujeito bom. Por sua vez, o Nielsen não dispensa: caiu na rede, é peixe, ou melhor, vídeo. Lendo assim, nem parece tão engraçada a troca de gentilezas entre os dois, mas vendo a cena, reparando nas feições dos dois, na ironia do Lubinha e na mansidão do Plok com a brincadeira (é pior do que cacimba pra pegar corda), é risada na hora! Mídia-molecagem das boas!

O acesso à internet da calçada se faz através da rede uai-fai da casa do Petróleo (ex-atacante do Ceará nos anos 80 e 90), que mora ali. Por enquanto, os vídeos estão somente circulando, via bluetooth, entre os moradores do bairro, mas, se algum dia um deles viralizar na internet, com milhões de visualizações etc. e tal, os mestres da mídia-molecagem da Cidade, enfim, terão seus talentos expostos para o mundo. Embora acredite que essa não seja a intenção de nenhum deles. O intento, único e exclusivo, é molecar, porque a arte milenar da molecagem é, dizem as boas línguas, genuinamente cearense – e, sendo assim, não pode morrer jamais! Arte digna de um povo que já vaiou o Sol por ter demorado a aparecer e elegeu um bode, o Ioiô, para vereador. A tradição da molecagem, a depender dos artistas da Cidade, continuará preservada! Ieeeiiiiii!!!!

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sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O Cocó e os viadutos

Artur Pires




E lá se foram mais algumas árvores do Cocó. Com a promessa inócua de que outras serão plantadas em outra área do Parque. Mas não! Queríamos que aquelas não fossem jamais derrubadas e, sim, que muitas outras mais fossem permanentemente plantadas. Mas não. Não é assim que funciona. O “progresso” e o busine$$ são mais importantes. Predatórios. A vida natural, as árvores do Cocó precisam dar passagem à selva de concreto. E, obviamente, políticos também precisam retribuir generosamente seus financiadores milionários de campanha eleitoral - não é assim que funciona nosso sistema político?

Abrindo aqui um parêntese, a respeito disso, as decisões políticas do governador cearense e do prefeito de Fortaleza são muito semelhantes às de governantes do período ditatorial; usam do seu aparato repressor e truculento para literalmente varrer, reprimir violentamente qualquer oposição, qualquer resistência às suas idéias, aos seus projetos. A ida do governador ao acampamento do Cocó dois dias antes da invasão violenta da Guarda Municipal é um capítulo novelesco desse enredo, digno de uma grande interpretação! (A professora Sandra Helena abordou o assunto no artigo “Disfarces mal disfarçados“, publicado n´O Povo).

Na vida real, sem teatralização, os acampados foram brutalmente atacados com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Esse modus operandi da Guarda é completamente desproporcional, inconcebível, intolerável. A sociedade e o poder público não podem assistir a mais um ato violento praticado por uma instituição oficial e nada fazer; devem se revoltar, se indignar em solidariedade às dezenas de pessoas que foram covardemente agredidas. Mais que isso: é preciso que se traga à tona, cada vez com mais força, o urgente debate sobre a necessidade de desmilitarização dos aparatos de segurança. Por fim, é preciso repudiar o papel da mídia empresarial no ocorrido: cobertura absurdamente manipulada para achincalhar e deslegitimar a luta dos acampados e, ao mesmo tempo, defender os abusos cometidos pela Guarda. Fecha parêntese.

A sociedade atual, do não-vivo, do artificial, nos empurra diariamente goela abaixo padrões de comportamento e consumo, que funcionam como verdadeiros modelos mentais que devemos seguir para alcançar uma vida feliz e perfeita, igual a comercial de margarina. Ter um carro faz parte do roteiro. Com o aprofundamento desse modelo de sociedade, os automóveis tornam-se cada vez mais acessíveis a uma boa parte da população. Se antes ter um veículo era símbolo de status, hoje é só mais um produto de consumo banal nas metrópoles. Para piorar, o Governo Federal, em tempos de crise, incentiva, com a diminuição de impostos, a compra e a venda de mais carros. As metrópoles – Fortaleza confirma a regra geral - ficam abarrotadas de veículos, intransitáveis.


É aí onde entram os viadutos, esses monstrengos que enfeiam de concreto as cidades existem porque, neste modelo de vida em sociedade, dá-se preferência, nas ruas, aos automóveis em detrimentos das pessoas. Daí as políticas de mobilidade urbana a serem incentivadas são sempre aquelas para garantir um fluxo cada vez maior de automóveis nas ruas. Constroem-se, então, viadutos, túneis, pistas exclusivas... Abram passagem para os carros e motos, os reis do pedaço! Mas, e nós, gente de carne, osso e sangue pulsando? E as árvores? A dura realidade: na sociedade do não-vivo, do consumo de aparências, o artificial é sempre mais importante que a vida essencialmente humana e natural.

Não é possível que ainda em 2013 se pense o desenvolvimento e o “progresso” em forma de grandes estruturas de concreto nas cidades, muitas vezes, como no caso do Cocó, interferindo negativamente nos ambientes naturais. O movimento deve ser completamente para o lado contrário, este modelo já se mostrou insustentável. É preciso menos veículos particulares, menos viadutos, menos túneis, mais bicicletas, mais pedestres nas ruas. Mas não. Na selva de concreto, o trânsito de veículos precisa fluir, não pode jamais emperrar os negócio$. Afinal, time is money! Enquanto isso, o Cocó sangra, pois lá se foram mais algumas de suas árvores. Até quando?

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