sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Crônicas da Cidade: A arte de levar uma geral

(Ilustrações: estênceis de Banksy)

Artur Pires

Se tem uma coisa que ocorre com certa frequência por estas bandas da Cidade dos Funcionários é a famosa geral, ou o baculejo, cuja forma abreviada é “baca”, que vem a ser, para os desavisados ou não iniciados no convívio de rua, a revista policial. São incontáveis as vezes, ao longo desses anos todos de vivência cidadeana, em que  tivemos que colocar as mãos na cabeça e fazer a famigerada cara de inocente.

De tão corriqueira que é a cena, alguns desses momentos constrangedores correram de boca em boca e hoje fazem parte do grosso caldo de estórias que formam a cultura cidadeana.

Uma geral bem conhecida por aqui aconteceu há muito tempo, no finalzim dos anos 90. A molecada descia pras bandas do terreno do Antônio Caixeira pra soltar raia. Era uma febre! O Rato era um dos mais verminosos na arte de empinar as pipas. Marcava presença sempre.

Vale aqui abrir um parêntese para falar um pouco do Rato, esse personagem folclórico do bairro, que mora no Tancredo Neves, comunidade situada na região limítrofe entre a Cidade dos Funcionários e o Jardim das Oliveiras. O Rato é também chamado de Cará porque, por morar às margens da Lagoa da Zeza, dizia que quando chovia no Tancredo e seu barraco alagava, os peixes vinham pular à beira de sua porta. E tome cará a semana toda! Assim, sempre que chovia, ele ficava em dúvida se achava ruim o temporal alagar sua casa ou achava bom o fato de se empanturrar de peixe! Fecha parêntese!

Pois bem, voltando à cena, passado devidamente o cerol, estavam todos soltando raias; o vento de julho, que sopra mais forte que o habitual, ajudava a empiná-las com mais facilidade, ainda que uns e outros, vez por outra, embolassem suas linhas chinesas, a novidade da época. O Rato era craque na arte de laçar e arriar as raias alheias. A cada pipa arriada, era uma tiração de onda danada.

 - Ieeeeiiiiii, zombavam uns dos outros!

Foi num desses momentos de diversão que a polícia chegou e anunciou a geral. Como o Rato era o mais velho da turma (já passava dos 18, enquanto a maioria tinha entre 14 e 16) e também o mais negro (sim, a PM é racista!), foi justamente nele que os porc..., ops, os policiais encarnaram:

- Mora onde, tu?
- Moro no Tancredo, senhor. Mas meu irmão mora nessa rua ali subindo, ó, disse ele, com as pernas trêmulas e as mãos à cabeça.
- Tão fazendo o que aqui?
- Tá vendo não? Tamo soltando raia!

Nesse instante, a audácia do Rato fez que com os outros não se contivessem e, escorados à parede também com as mãos para cima, rissem baixinho. O polícia se incomodou com aquela gracinha e aumentou o tom.

- Gaiatim, né, maxo (o macho que designa masculino é grafado com “ch”, mas esse “maxo” aqui, típica expressão do cearensês, é com “x” mesmo!), tu? disse o policial, já perdendo a pouca paciência costumeira.
- Só respondi o que o senhor perguntou, cidadão, disse Rato.
- Pois cadê o teu documento? Bora, cadê?
- Cidadão, com todo o respeito, mas eu nunca ouvi falar que pra soltar raia precisava ter documento não, ó!

Nessa hora, bastou a primeira risada tímida pra todos caírem numa gargalhada geral.  O polícia ficou descontrolado e meteu o Rato no camburão. Horas mais tarde, o irmão dele, Neneca, que morava ali próximo, foi tirá-lo do xilindró. Passado o constrangimento, a estória ficou e, certamente, será passada de geração para geração entre os moradores.

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Noutra vez, dia desses tomávamos um litrão na barraca da Lôra, na praça, acompanhado de um churrasquim de gato e umas rodelas de limão, quando uma viatura do Ronda, com três polícias, chega e anuncia a geral:

- Os homens tudim com as mãos pra cima!

Um dos amigos, que estava acompanhado da namorada, fez a infeliz pergunta:

- Até eu, cidadão?
- E tu num é homem não, porra!

Mal o cana acabou de falar e o amigo se posicionou pra levar o baca também. O que a polícia não esperava é que estivesse ali o Daniel, um cara que nasceu com o tino pra comédia e vive inventando expressões e palavras que depois se espalham pelo bairro – me arrisco a dizer que algumas grassam por toda a cidade. O “n´tem quem diga” (que pode ser usado em qualquer conversação, pra atestar, confirmar ou negar algo – faça aí você o teste!) e o “já deixei duas muié por causa disso” (ao ser questionado sobre alguma coisa que não quer responder) são as duas novidades que campeiam por estas bandas no momento.

Daniel vive também dizendo que na casa dele, na qual vive com a mulher, quem manda é ele: “Lá em casa quem manda sou eu. A mulher manda eu lavar as roupas e o que eu faço? Lavo, mas num enxugo! Manda eu varrer a casa? Eu varro, mas num apanho o lixo. Manda eu fazer o almoço? Eu faço, mas num ponho a mesa”.  E assim prossegue com seu repertório de gaiatices...

Nesse dia da geral, o polícia encostou nele e, enquanto o apalpava, iniciou o interrogatório:

- Tu deve alguma coisa, maxo?
- Sim, só cartão de crédito!
 - Não tô falando disso não. Quero saber é se teu nome é sujo?
- Sim, no SPC e Serasa.
- Rapaz, o que eu quero saber é se tu responde alguma coisa?
- Só o que você perguntar!
- Pois eu tô perguntando é se tu deve alguma coisa na Justiça, maxo? disse o polícia, já bufando pelas narinas.
- Ah, porque você não disse logo. Pra Justiça eu devo só duas cópias de um documento que eu tirei no fórum e nunca paguei. E só num paguei porque a moça não tinha troco pra 50!
- Maxo, tô vendo que tu é cheio de gracinha. Tu usa droga?
- Se Derby e Ypióca entrarem nessas estatísticas...
- Não tô falando disso. Tô falando de droga mesmo!
- De vez em quando assisto o Faustão...
- É o quê, maxo?
- Pois é, n´tem quem diga!
- Maxo, vai, vai, vai, que tu tá é bêbo!

E assim, terminada a geral, todos voltamos às nossas cadeiras e continuamos a prosa e a bebedeira. O litrão já ia pela canela da garrafa, mas depois daquele geral bem sucedida (isso é, ninguém tinha rodado), o que nos restava era pedir um outro litro pra comemorar.

- Ô Lora, traz mais um aí pra espantar o nervosismo!

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Domingo na feira

Foto: Fabiane de Paula
Artur Pires

- Taqui, meu senhor, ó! disse a tiazinha, bem preta e pano amarrado à cabeça, retirando do panelão, donde borbulhava água quente que cozinhava outras espigas, um milho verde, entregando-o em mãos a um homem de grande bucho, mãos peludas e bigode volumoso – que parecia muito com o Leôncio, do Pica-Pau. O homenzarrão agradeceu, pagou, e se agarrou com gula à espiga.

O segredo de aproveitar o melhor da feira é acordar cedo. Foi o que fizemos. E olhe que acordar cedo no domingo não é uma das coisas que mais aprecio, não, viu! Mas tínhamos que ir à feira. Eu precisava comprar um aquário e o amigo que me acompanhou, um peixe beta. E preço melhor que o da feira não há!

A feira da Parangaba – também conhecida como feira dos pássaros – ocorre há mais de duas décadas, às margens da lagoa que dá nome a ela e ao bairro. Lá, você encontra a venda de tudo: rolo de fumo, rapadura, mel, farinha de mandioca, molho de pimenta malagueta, pó de castanha, linhaça, hortaliças e frutas diversas, porco, pato, galinha de capoeira, capote, caranguejo, cará, gado, coelho, cabra, ganso, peru (todos os animais citados, vivos ou mortos, à escolha do freguês), cotia, cachorro, gato, galo indiano de briga, pássaros, muitos pássaros (vimos até um filhote de carcará – “pega, mata e come, num vai morrer de fome, mais coragem do que homem” - sendo comercializado: uma pena!), todo tipo de produto eletrônico, mecânico e hidráulico, roupas, bonés, lupas, CDs, DVDs, vinis, motos, carros, bicicletas, celulares, tablets, dindin, caldo de cana, caldim de caridade, buchada, sarrabulho, panelada, feijoada, cerveja, cachaça, jogos pra perder dinheiro (perdi dois contos num lá onde tinha que chutar a bola e derrubar duas garrafas de uma vez), etc. No caso da feira, nem o etc. vai ser capaz de dar conta da variedade de coisas que se encontra por ali... Até ciganas, nas devidas indumentárias, prontas para ler as mãos têm na feira! A feira da Parangaba é maior que a do Assaré, que a de Redenção, que a da Barbalha e a do Crato juntas; é um mundão de gostos, sabores, cores e gentes...

- Vai querer, tá bem fresquinha, diz o vendedor de carnes, amolando com muita rapidez o enorme facão com que corta habilidosamente aqueles troços de porco.
- Seu Zé, hoje eu vou querer só a orelha, o rabo e bem muito toicim, que é pr´eu fazer uma feijoada daquelas lá em casa.
 - Só se for agora, minha jóia! responde de bate-pronto o vendedor, se preparando para fatiar o leitão.

Na feira, há tipos diversos. Enquanto tinha uma caixinha de som à mão e escutava um forró da favela, um pivete que vendia uma bike, com guidão alto – no estilo da favela -, anunciava:

- Óia, minino, bike novinha hein! Só o freio que tá pêdu, mas o resto tá rochedo!

Passeio os olhos rapidamente sobre a bicicleta e ela me parece bastante baqueada. Pensei: “ora só o freio, besta é quem compra!”.

- Tá rochedo vete, só olhando mesmo, respondi-lhe, fazendo um gesto de cumprimento com a cabeça, no que fui prontamente correspondido.

Dali, rumamos para a tenda do seu João do Caldo, um senhor com bastante senso de humor, onde rolava um caldim de cana. 

- Seu João, eu vou querer um!
- Na hora, meu fi. Deixa eu botar aqui no seu caneco? disse seu João, em duplo sentido, rindo tímido, de quem está fazendo graça!
- Hehehe, gaiatim, né? respondi encabulado.
- Tô falando sério, meu fi. Olhe, tem coxinha e outros salgados também. Já tá comido? brincou novamente o vendedor de caldo, lançando mão de um sorriso generoso. 
- Hahaha... Já, já! Tomei um café da manhã reforçado mah. Na próxima vez eu como. Por hoje, só o caldim mesmo!

Foto: Sara Maia
Já tínhamos percorrido toda a feira. Agora, era hora de realizar um desejo, uma vontade antiga: torrar um à beira da lagoa da Parangaba. Chegando à margem, nos sentamos e experimentamos aquela brisa suave que vinha das águas, mesmo o clima estando quente! Garças planavam perto de onde estávamos, pairando no ar, à procura dos carás que abundam por ali. Ao lado, numa curva da lagoa, pivetes chupavam mangas coités e lançavam uma tarrafa na água, na esperança de pegar peixes. Foi sal! Ao puxar de volta, dezenas de carás medindo uma palma de mão, em média, estavam presos à rede de pesca. Os pivetes comemoraram e chuparam mais mangas! Na metade do beque, chegou um feirante pedindo uma bolinha, e repartimos os três aquele “pão”. Ficamos por ali, à beira da lagoa, recebendo de bom grado aquele vento que soprava manso e nos fazia divagar sobre a grandeza da vida...

Tempos depois, a larica apertou.

- Bora comer uma panelada? sugeriu o amigo que me acompanhava.
- Ora se...
- Tem ali, ó, disse ele, apontando para uma das tenda da feira.

A barraquinha que tinha uma sinuca estava lotada, sem cadeiras e mesa livres. O jeito foi se contentar numa sem sinuca mesmo. “Deixa pra jogar noutra oportunidade”, pensei. Enquanto aguardávamos a panelada, pedimos uma cerveja gelada pra aplacar aquele calor. Ao lado, um papudim solitário nos fitava, comia uma buchada e tomava um burrim, que já ia pela cintura. Ao fundo, das caixas de som afixadas às estacas que amparavam a estrutura, Zezé de Camargo gritava estridente: “Menina veneno, o mundo é pequeno demais pra nós dois...”. Colher às mãos, comemos a panelada gulosamente. Hummmm!!! Ô coisa boa! Deu até pra escorrer o suor da testa.

Já era perto do meio-dia quando nos recuperamos da panelada e decidimos retornar à Cidade dos Funcionários. Além do aquário, ainda deu tempo de comprar um mel de abelha italiana pra curar a rouquidão e as dores de garganta e uma farinha de castanha do Pará pra adicionar à bananada do café da manhã e dar-lhe mais sustança.

O que fica de mais rico da feira é o contato com tipos diversos, principalmente com uma Fortaleza periférica, segregada – nenhum pouco apavorada! -, que nos escapa muitas vezes, mas que mantém firme e lindamente suas origens de povo, que se sustenta em meio a essa selva de pedra excludente com luta, bom humor, criatividade, sangue nos olhos e boas doses de resistência.

- Vai uma esperança aí? Tá fresquinha!