O Canto das Tribos fez história e deixou saudade na cena regueira cearense (Foto: Paulo Maurício Bezerra)
* Artur Pires
O ano era 2001. Naquela tarde de sábado, Chiquim, todo
animado, já limpava as mesas porque sabia que o bar certamente receberia os
fregueses fiéis, como de costume. Papudins da velha guarda da Cidade, entre eles
Néri, Seu Lúcio e Robertão, e uma dúzia de jovens com pouco juízo, mas mil idéias
na cabeça assentavam-se, todo sábado, às cadeiras do Bar do Chiquim, nas
proximidades da BR-116, na Cidade dos Funcionários.
Na mesa dos papudins, além da cachaça ou da cerveja gelada
(essa mais raramente), os papos de sempre: Bartô Galeno, brega, Roberto Carlos,
futebol, saudade dos “velhos tempos que não voltam mais”, mulheres, Reginaldo
Rossi, jogo do bicho – e muita, muita boemia imiscuída dentro de cada assunto, compondo
cada diálogo.
Na mesa dos jovens desajuizados, além dos celulares de
Sapurara prata (a opção cerveja gelada nem raramente, pois a época era de vagas
magras, esquálidas), também os papos de sempre: Racionais MC´s, Bob Marley,
reggae, rap, futebol, surfe, sexo, drogas, rock'n'roll,
pichação, saudade do tempo dos bailes funks, Sabotage, Gladiators, a
sexta-feira da praça, jogo do bicho – e muita, muita sede por adrenalina, fome
por experimentações as mais diversas, gana de descobrir o mundo e suas possibilidades
infinitas. Eram exatamente isso: jovens, entre seus 16 e 25 anos, cheios de
vida!
A inquietude e a subversão características
dessa fase de transição entre a adolescência e a idade adulta estavam lá,
marcando presença naquele grupo. Eram companheiras constantes e muito bem-vindas.
Quase todos tinham codinomes, que assumiam com convicção e uma pitada de
orgulho: Borel, Repolho, Sodom, Robô, Manko, Pitoco, Santo, Pancada, Lubinha,
Gugu, Marrom, Carlim (que esteja em paz!), Plok, Coelho, entre outros. Todos
moradores da Cidade dos Funcionários e integrantes da União dos Grafiteiros
(UG). Todos fãs de reggae e, por isso, frequentadores contumazes do Canto das
Tribos (para quem nunca ouviu falar no Canto das Tribos - existe essa pessoa?
-, foi uma casa de shows nas proximidades do Dragão do Mar, na Praia de Iracema
– era, a bem da verdade, um pequeno galpão no início e depois, já na sua
segunda fase, quando se transferiu para um outro espaço que ficava ao lado do
endereço inicial, virou um grande galpão - que surgiu em Fortaleza de meados para
o fim dos anos 90. Tinha esse nome porque reunia tribos diversas, mas,
principalmente, roqueiros às sextas e regueiros “guerreiros” aos sábados). Apresentações
históricas marcaram o CDT: Gladiators, The Wailers, Gregory Isaacs, Eric
Donaldson, Alpha Blondy, Adão Negro, Ponto de Equilíbrio, Racionais (que não é
reggae, mas entra na cota), além das cearenses Rebel Lion, Dona Leda e Tribo de
Leões são alguns dos exemplos, entre tantos outros.
Saindo agora do Canto das Tribos (já já
voltaremos a ele) e retornando ao Bar do Chiquim naquela tarde de sábado, depois
de cinco celulares de Sapurara prata nos “quengo”, já alcoolicamente “brisada”,
a patota fechava a conta e ia para casa se preparar (leia-se tomar um banho rápido
e jantar) para o reggae do CDT no sabadão à noite. Antes de pegarem o finado
Paranjana 1 até o terminal do Papicu para tomarem outro cambão à PI, encontravam-se
na praça para torrar um e, só aí, curtir a brisa no caminho até o reggae. Por
isso, a disputa pelo assento da janela e, consequentemente, pelo ventinho na
cara era árdua.
À época, à parte a cannabis e a cachaça, que nunca deixaram de ser apreciadas, a onda
de 11 em cada 10 integrantes daquela turma era tomar “rocha”, o nome popular
para o psicotrópico Rivotril. Seguiam todos “ripinados” e felizes da vida ao
CDT. A leveza proporcionada pelo comprimido tarja preta misturava-se à da
erva, dando-lhes uma sensação quase de flutuação. Na chegada à PI, uma rápida
passada pelo Dragão para conferir o que estava acontecendo. No entanto, o que
interessava mesmo ficava na Rua José Avelino, 42: o Canto das Tribos. Era lá
que aqueles jovens sem juízo, mas muitas idéias na cachola sentiam-se à vontade
para dançar, confraternizar e viver a essência reggae de “paz e
amor”.
A sensação de liberdade e comunhão coletiva
vivenciada naquele espaço é inenarrável. O CDT foi, no seu período áureo, entre
1998 e 2003, uma baforada de resistência roots
em meio à babilônia que o rodeava por aquelas bandas da PI. Pretos, brancos,
pobres, burgueses, gays, héteros, jovens, adultos, “muito-doidos”, caretas, homens
e mulheres misturavam-se sem preconceitos e segregacionismos e, ao som de
várias pedradas dos reggaes jamaicano, cearense, brasileiro e mundial, pareciam
sempre levar a cabo a máxima de One Love,
do rei Bob Marley. No entanto, quando rolava My Mind, do Hugh Mundell, na versão da Rebel Lion, desculpem o
clichê, a galera ia ao delírio. Esse som foi e será o eterno melô do Canto das
Tribos. Nunca uma música identificou-se tanto com um local e foi tão
incorporada pelos regueiros como um símbolo do lugar do que a dobradinha My Mind e CDT. Quem viveu a época sabe,
dizem as boas línguas.
E os jovens desajuizados da Cidade? Bem,
esses aproveitavam, ao seu modo, cada minuto daquela magia envolvente de música
reggae, fumaça, muita fumaça, e troca de interações humanas que marcou o CDT. O
coquetel molotov de cachaça, rocha e maconha provocava uma explosão de
sensações, levando-os a um estado de percepção diferenciado da realidade. A
busca pelo prazer era a regra, fosse ele mental, corporal, sensorial e outros
“al”. Era uma coisa meio “Woodstock revisitado”. As portas da percepção
escancaravam-se às suas frentes, pedindo apenas, se possível, um pouco de
moderação. Pedido que quase nunca era atendido. Ou então não seriam quem
eram.... irresponsáveis sonhadores à procura da “lombra” perfeita. Era o reggae
troando e as sensações transcendendo-se: a combinação ideal buscada por aquela
trupe. E assim seguia toda a noite, num misto de transe e euforia coletiva!
(Foto:
Paulo Maurício Bezerra )
O canto desordenado dos pardais trepados na
grande mangueira que compunha a paisagem do CDT junto com os primeiros feixes
de sol anunciavam a incipiente manhã que chegava. Era hora de voltar à
realidade. E que retorno ao mundo real: de cara, era preciso força e coragem
para encarar, na maioria das vezes em pé, o corujão lotado até o terminal. Meu
deus!, de onde saía tanta gente para pegar ônibus em plena 5 horas da manhã?
Vai saber! No terminal do Papicu, o caldinho de carne “pegando fogo” restaurava
as energias perdidas durante a noite e preparava para o sono bom que viria na
sequência. A volta, no finado Paranjana 2, bem diferente da ida, era de
silêncio, sonolência e rebordose. A parada final era a praça da Cidade dos
Funcionários. De lá, seguiam para suas casas, cansados e maltrapilhos, mas com
uma única certeza: - No próximo sábado, tem mais!
O Canto das Tribos encerrou suas atividades
em 2005, mas as portas da percepção que ele abriu nunca mais foram fechadas!
* Artur Pires é mais um, entre tantos regueiros, saudoso do Canto das Tribos
Postagem relacionada: Contos da Cidade: Dedé, boemia e futebol
Postagem relacionada: Contos da Cidade: Dedé, boemia e futebol