(Ilustração:
Klévisson Viana, na HQ Lampião... Era o cavalo do tempo atrás
da besta da vida; 1998, SP, Hedra)
Artur
Pires
Foi em Assaré, Cariri cearense, que vivi os primeiros
anos da minha infância. Nasci em Barbalha (por vontade de minha mãe, que é de
lá), também no Cariri (e viajava para lá e para o Crato com frequência para
visitar a parentada), mas é do Assaré que carrego as mais remotas
reminiscências pueris, lá pelos derradeiros anos da década de 80. Morávamos eu,
meus pais e uma das minhas irmãs numa casa simples e bonita, de mureta branca e
portãozinho de ferro - à vista de todos os que passavam em frente ao local -, jardim
multicor, tomado de flores e plantas, que davam uma suavizada de brisa leve e
fagueira ao calor de suar em bicas que fazia por aquelas bandas.
As samambaias suspensas em jarros se espreguiçavam na
varanda, os crótons margeavam os cantos do muro com sua mistura de cores, os
beija-flores toda manhã vinham bicar as papoulas e, pintando parte da paisagem
do jardim de encarnado, um bouganville vermelho recebia cotidianamente a visita
de sabiás e bem-te-vis em seus galhos.
No quintal, mais pés
de plantas: goiaba, ata, mostarda, pimenta malagueta, pimentão, tomate,
capim santo, erva cidreira e erva doce esverdeavam aquela parte de trás da
morada. Os calangos eram vistos aos magotes. Ficavam também por ali as galinhas
de capoeira que minha mãe criava. Nesta fase da infância, meus animais de
estimação eram os pintinhos. Quando brincava com eles, minha mãe ficava de olho
em mim para que não os esmagasse em arrochos desmedidos. Algumas vezes os vi
nascer, naquela luta árdua pela liberdade:
O
pinto dentro do ovo
aspirando
um mundo novo
não
deixa de biliscar,
bate
o bico, bate o bico,
bate
o bico, tico tico
pra
poder se libertar
(Patativa do Assaré – Lição do Pinto)
De vez em quando, uma galinha mais gorda era escolhida e
ia para a panela. Não gostava que lhes torcessem o pescoço para matá-las, mas
as adorava ao molho ou à cabidela. Hummmm! Certa vez, mamãe inventou de criar também
no quintal um veado, o Bambi, que pouco tempo depois foi morto por uma cobra.
- Tenho impressão de que foi cascavel ou coral – diz ela,
ainda hoje.
Só sei que, por conta desse ataque mortal, meus pais eram
cheios de cuidados quando eu e Alana, minha irmã, íamos ao quintal:
- Cuidado, vocês, que aí tem cobra. Calcem pelo menos uma
chinela – dizia mamãe, com voz firme.
No tempo de chuva, as gias, os cururus e as rãzinhas de
banheiro saíam do brejo e se entocavam nas matas do jardim e do quintal lá de
casa. De noite, era um coaxado medonho, mas a gente se acostumava. As cigarras,
com seu grito agudo, também surgiam aos montes. Mas eu me vidrava mesmo era nos
vaga-lumes e seu piscar de luzinhas mágico.
- Chega, Artur, vem ver um vaga-lume!
E eu saía de onde estivesse, em disparada, para apreciá-lo.
E ficava ali, embasbacado, observando-o, até a hora em que ele cansava de se
exibir para mim e ia embora.
Na parte interna da morada, móveis amadeirados, escuros e
com acabamentos curvilíneos remetiam a um estilo considerado démodé nos dias de hoje. Foi num piso de
taco de madeira onde dei meus primeiros passos, ainda cambaleantes, e depois, já
craque na arte de andar, brinquei com meu cavalinho feito de cabo de vassoura.
(Ilustração:
Klévisson Viana, na HQ Lampião)
Próximo à casa, na esquina, ficava a bodega do seu
Canuto, onde meus pais compravam artigos domésticos e trocavam uma prosa
costumeira. Havia também nas proximidades a bodega do seu Pedro: cachaça,
querosene e sabão não faltavam nunca. A mulher de seu Pedro, dona Lurdes,
vendia o melhor dindim da cidade. Foi ela quem provocou em mim o gosto por
picolés.
A Escola Patativa do Assaré, onde aprendi o bê-a-bá, ficava nas redondezas da praça
da matriz, a principal da cidade. A nossa casa ficava a três quadras de lá. Às
segundas-feiras, fervia naquele quarteirão a feira de alimentos diversos (desde
hortaliças a quebra-queixo), fumo de rolo, roupa e o comércio de artigos
sertanejos (chapéus, gibões, chicotes, peitorais, alpercatas: tudo em couro). A
praça ficava abarrotada. Esbarrões eram frequentes. Vinha gente da serra de
Santana, de Amaro, de Genezaré e de
Aratama. Até de Saboeiro, Antonina do Norte e Tarrafas.
Meus pais não me deixavam ir
só à feira. Claro! Era um meninote de apenas quatro, cinco anos no máximo. Um
pingo de gente, de pele preta, grande sinal de nascença nas costas, cabelo de
índio, parecendo cortado em cuia, boca e olhos miúdos, curioso e medroso. Ia
para a feira com mamãe. Quando ela ia, me levava porque percebia meu encanto
com aquela miscelânea toda da feira do Assaré. Tipos diversos. Ir àquela feira,
que ficava a poucos quarteirões de casa, era como dar a volta ao mundo. Tudo
era novo – e tudo era mágico!
- Eita que tá crescendo
rápido o minino, dona Ana! – dizia Galego, verdureiro onde mamãe sempre
comprava as frutas e verduras lá de casa, bagunçando com seus dedos grossos e
peludos os meus cabelos na altura da testa.
- É.... Meu neguim! – dizia
minha mãe, toda orgulhosa com a cria, novamente bagunçando meus cabelos à altura
da testa.
Após pegar as laranjas,
beterrabas, bananas e hortaliças que Galego separava toda segunda-feira para
ela, me pegava pelo braço e seguíamos o passeio. Entre os tipos da feira, eu observava
com mais atenção os sertanejos, aqueles cabras da pele engelhada pelo sol
castigante do semiárido, das mãos grossas e calejadas devido ao manejo do arado
e da enxada no roçado. Trabalhadores. Enxugavam o suor da fronte com uma rápida
passada de mão. A cabaça d´água amarrada à cintura, a camisa de botão aberta na
altura do peito e o terço envolto no pescoço:
- Me vê dois rolo pra módi d´eu
levar pro Saboeiro!
Fumo de rolo – que era
enrolado na palha do milho - e rapadura eram artigos imprescindíveis à feira. Quase
sempre passeando entre os feirantes e clientes, lá estava ele, com
seu jeito gracioso, simples, prosador, poético: Patativa do Assaré. Toda
segunda-feira, descia a serra de Santana, distrito de Assaré, e se misturava à
multidão. Quando já estava na cidade, apenas atravessava a rua, pois sua casa
em Assaré fica em frente à praça da matriz.
(Ilustração: Klévisson Viana, na HQ Lampião)
Patativa era gênio... E gente! Das
melhores! Sua simplicidade era admirável, assim como sua sabedoria. Devido à
amizade do poeta com meu pai e com minha mãe, que era professora de Isabel,
neta dele, fomos diversas vezes à sua casa em Assaré e uma vez à sua morada na serra
de Santana. A casa era simples: taipa e terra batida. Mas a vida deles ali na serra era digna. Não havia barriga roncando de fome; se chovesse, a roça dava conta do sustento. Por isto mesmo, a chuva era a coisa mais aguardada ao longo do ano. Na seca braba, o sertanejo se virava como podia: tanajuras, tejos, pebas e preás iam pro forno. Naquele dia, fomos convidados para um almoço farto: mugunzá, galinha caipira, milho assado, banana
maçã, melancia, pamonha, jerimum, canjica, cuscuz. Tudo criado, plantado e
colhido ali mesmo. Antes do almoço, quase como um ato ritualístico, Patativa e
os seus entornaram uma terça de cachaça, naqueles copos americanos. Glut! De uma vez só, sem fazer careta!
- É pra módi abrí o apititi – disse um
dos parentes do poeta que estavam em volta da mesa.
Da casa de Patativa ao lado da praça da matriz, em Assaré, onde fui mais vezes, carrego flashes de memória mais vivos, mais detalhados. A cadeira de balanço na sala, onde ele gostava de se balançar enquanto enrolava seu fumo, já com as mãos trêmulas pelo peso da idade, mas com a habilidade de quem sabia o que estava fazendo; o grande pote de barro, sobre o jirau, onde ficava a água que dona Belinha, mulher de Patativa, me servia num caneco de flandre; a moringa; a grande panela de barro; o bule onde era servido o café (meus pais adoravam o café de dona Belinha!); as fotografias familiares antigas, mais parecendo pinturas, decorando as paredes da casa; e, logicamente, toda a prosa, toda a poesia, toda a oralidade extasiante do maior poeta popular de todos os tempos. Eu, minino véi, nem compreendia a grandeza de Patativa à época, mas adorava ouvir as rimas e melodias daquela cantoria, sob a voz nasalada, telúrica e verdadeira do poeta.
Em 1990, meu pai, que era bancário, foi transferido para
Redenção, no Maciço de Baturité. Fomos embora do Assaré, mas aqueles anos vividos
ali reverberam em mim ainda hoje. Voltamos lá algumas vezes, visitamos
Patativa. Ele veio nos visitar certa vez, quando já morávamos em Fortaleza. As
lembranças do Assaré não estão guardadas na memória à toa. Sempre que ameaço
esquecê-las, elas vêm à tona para me reavivar e mostrar a beleza da simplicidade
e da sabedoria sertaneja: plantar, colher, comer. Viver! Com prosa... E poesia!
Vida eterna a Patativa e ao Assaré!
(Xilogravura/ilustração:
Arievaldo Viana)
Mas porém vou lhe contá,
as
coisa aqui como é,
sou
fio do Ceará,
nascí
aqui no Assaré,
...
Nesta
bôa terra nossa
quando
é tempo de invernada
bota
girmum chega a roça
fica
toda encaroçada
...
Não
sendo tempo de fome
sinhô
douto pode crê,
nesta
terra o cabra come
até
a barriga inchê,
nem
carne, nem macarrão,
mas
porém mio e feijão
e
farinha é a vontade,
nimguém
come da ração
como
se faz na pensão
lá
das rua da cidade
...
Tô
lhe contando a certeza
das
coisa do meu sertão,
aqui
ninguém tem riqueza
mas
porém tem munta ação
(Patativa do Assaré – Ilustrismo Senhô Doutô)
* Texto publicado no Portal Vermelho