sexta-feira, 24 de maio de 2013

Contos da Cidade: O torneio da galinha


(Foto: Blog Quase Tudo Futebol)

*Artur Pires

Sábado de manhã, início dos anos 2000. A noite anterior foi mal dormida. Ansiosos. Insoniosos.  Acordaram cedo, encontraram-se pelas ruas e foram de magote ao terreno do Antônio Caixeira, na Cidade dos Funcionários. Limparam os matos que ainda restavam e prepararam os últimos detalhes para que o campo de piçarra ficasse em condições de sediar o torneio de futebol do bairro. Enxada e machadinho para a limpeza do matagal; martelo, madeira e prego para fazer as traves. Pronto! Agora estava tudo preparado para o certame mais comentado por aquelas bandas nos últimos meses.

Formaram-se seis times ao todo: o da pracinha; a “panelinha” da Rua Enfermeiro Joaquim Pinto; outro da Cezídio de Albuquerque – o time da rua de baixo, que fica às margens da BR-116; mais um time do Parque Iracema, bairro vizinho; e outros dois com jogadores que não estavam em nenhum dos “esquadrões” citados.

Mas e o prêmio do campeão?
- Não dá certo dinheiro não. Se não é arriscado a negada se matar aqui, cumpade! - disse um dos jogadores.

A maioria concordou. O jeito foi arrumar outra premiação. Outro dos participantes disparou:
- Um litrão, né não?
- Um litrão é muito pouco, dá nem pruma rodada completa. Tu sabe como é a galera aqui, né, maxo? Gosta quase nadinha da “Kátia”, né?
- bom, três litrão, então! Fechou?

A discussão se prolongou um pouco. Alguns queriam uma caixa de cachaça, mas o dinheiro arrecadado com as inscrições dos times só dava para os três litros mesmo. O saudoso seu Zé Grande, morador histórico do bairro e que morava nas proximidades do terreno, ainda veio com um brinde:
- Tenho uma galinha bem gorda no quintal, que ia fazer amanhã no almoço. Mas vou dar ela pra vocês. O campeão leva a galinha.

Foi uma saraivada de gritos em comemoração. Daqueles bem cearenses. O torneio ia começar.

Sentados à beira da calçada, separados pela cerca de arame farpado que dividia o terreno da rua, os moradores da Cidade prestigiavam o torneio, sem abrir mão da zombaria costumeira:
- Esse chutezim aí não quebra nem uma creme-crack molhada no leite – ao verem um chute fraco, sem força o suficiente.
- Olha o troco, vai pegar teu troco – quando um jogador levava um drible desconcertante.
- Vixiii, vai buscar teu pé na lua, maxo! – quando um jogador “furava” um chute.
- Bandeirantes, o canal do esporte – quando alguém chutava a bola muuuuito longe do gol e o jogo parava para que fossem buscá-la.
- Precisa tomar mais banho quando chegar em casa não, viu? – sempre que alguém levava um “banho de cuia” (para os “não-letrados” em futebol, a jogada descrita se refere a quando um jogador  lança a bola por cima de outro e a alcança do outro lado).

Mas também aplaudiam, estimulavam, berravam a cada gol. Com o perdão do clichê, a torcida era um espetáculo à parte. Falando em à parte, à parte a torcida, os jogadores também tinham seus “truques” antes das partidas. Uns desciam até o terreno vizinho, sentavam-se em círculos, batiam papo. Quando voltavam, estavam mais tranquilos, sorridentes e com olhos avermelhados. Outros subiam a rua do terreno até a bodega da dona Dindô. Lá, entornavam doses generosas de cachaça. Quando juntavam mais de dois, interavam um burrim na certa! Nada disso atrapalhava o andamento do torneio. Na hora dos jogos dos seus times, todos estavam lá, a postos!

Por volta das 4 horas da tarde, a disputa tinha sua grande final: o time da praça, formado por Nielsen, William, Artur, Lubinha e Assis, enfrentaria o time da Enfermeiro, composto por Siri, Junim, Alceu, Cleandro e Marrom. Grande jogo! De virada, o time da pracinha venceu a decisão por 2 a 1. O torneio chegava ao fim, mas a comemoração apenas se iniciava.

Os campeões pegaram os três litros de cachaça, puseram a galinha embaixo do braço e levaram-na até a casa da Adriana, que já tinha garantido ainda durante o torneio que a mulher dela, Luciana, sabia matar e depenar a ovípara como ninguém. Ela, Adriana, se encarregaria de cozinhar a galinha ao molho. Huummmm!!!


(Ilustração: Sandro Arts)


A essa hora, já se aglomeravam na calçada quase todos os times, ansiosos pela galinha para tirar o gosto da pinga. Por enquanto, iam se virando com as bandinhas de limão que o Nielsen tinha ido buscar na sua casa, ali perto. Proseavam sem parar:
- Ei, mas naquela hora lá foi pênalti. Era pro Carneiro (o juiz) ter marcado!
- Tá é doido, é? Pênalti da onde? Nem encostei in tu, mah!
- Tu viu? Parece que a prefeitura vai reformar a pracinha?
- Cumpade, se botarem pelo menos uma grade ali atrás do gol pra bola não embarcar mais pra delegacia valendo.
- Que nada, rochedo também é se fizessem um pista de skate.
- Pois é, já fizeram pista de skate no Jardim, nas Cajazeiras, na Aerolândia e num fazem uma aqui. Béisso!

No meio da conversa solta, Adriana despontava na calçada com uma grande panela às mãos:
- Negada, a galinha pronta! Mas cuidado que quente!

Lubinha correu de prontidão para ajudá-la. Pegou a panela com cuidado e colocou-a no chão. Daí em diante, como num passe de mágica, os três litros de cachaça iniciais foram consumidos num relance.
- comprar mais! Que ainda tem é muita galinha aí.
- Mas o Arnaldo e a Dindô já tão fechado. No Tancredo é bem baratim!
 - Eu vou lá. Me empresta tua bike aí, negão?
- Vai lá! aí!

Coçaram os bolsos e interaram mais dois litros. A essa altura, entornados três litros e outras coisitas na mente, a maioria já enrolava a língua e ria como se tivesse comendo, ao invés de galinha, carne de palhaço. Pouco tempo depois, Gugu voltou do Tancredo Neves com os dois litros embaixo do sovaco. Beberam tudo!

Mais tarde, alguns resistentes ainda foram à barraca do Marujo, na praça, tomar mais meio-litro, e escutar um Raul Seixas, um Sabotage ou um Racionais. Marujo também tinha um CD da Rebel Lion – do tempo do Canto dos Tribos - que fazia o maior sucesso com a galera!

No fim da noite, já na madrugada do domingo, foram para casa. Alguns aos empurrões, outros no piloto-automático. Mas chegaram felizes e salvos às suas residências. 

O torneio da galinha tinha dado asas!

Hoje, o terreno do Caixeira, onde o campinho de terra foi construído, se “transformou” em três casas duplex, daquelas padronizadas à moda da especulação imobiliária. Nos últimos 15 anos, a Cidade dos Funcionários tem enfrentado um processo predatório e agressivo de especulação imobiliária, no qual terrenos e estórias como essa cada vez mais dão lugar a casarões, concreto e solidão! Ainda assim, a resistência suburbana, na praça e em algumas ruas do bairro, permanece viva. Até quando?

*Artur Pires é morador da Cidade dos Funcionários há 20 anos

segunda-feira, 13 de maio de 2013

13 de maio: 125 anos da abolição da escravidão no Brasil. Para quem?*

(Ilustração: Pawel Kuczynski)

Por Artur Pires

Hoje, 13 de maio de 2013, completam-se 125 anos da abolição da escravidão no Brasil. Na teoria, sublinhe-se. Na prática, as condições de acesso e oportunidades de inserção nos processos sócio-econômicos, culturais e educacionais à população negra brasileira continuam dificílimas e marginais.

Apesar de constituírem mais da metade da população brasileira (IBGE, 2010), com 51% dos habitantes do Brasil, os negros (pretos e mulatos) são recorrentes na grande maioria dos indicadores negativos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Se o país fosse dividido pelas “raças” e pelo acesso destas às oportunidades, constataríamos um Brasil com padrões nórdicos de um lado – a face branca -, e outro de índices semelhantes aos países mais pobres da África – o pedaço negro.

Ainda que o Brasil tenha evoluído em IDH, melhorado a distribuição de renda, diminuído a taxa de analfabetismo, a população negra continua sendo a que menos tem acesso a estas recentes conquistas sociais, pois, segundo estudo de 2010 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 70% dos brasileiros situados na faixa de vulnerabilidade social e econômica são negros.

Mercado de trabalho
No mercado de trabalho, a desigualdade proporcionada pela cor da pele também salta aos olhos. Segundo o Relatório Global sobre Igualdade no Trabalho, de 2011, estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a taxa de desemprego é bem maior entre negros.  Já outra pesquisa desenvolvida pelo Instituto Ethos, em 2010, mostra que quanto maior o nível hierárquico nas empresas no Brasil, menor a probabilidade de ter um negro no comando. No ano do levantamento, os negros representavam residuais 5% dos executivos e 13% dos gerentes nas 500 maiores empresas brasileiras.

Ainda hoje, 125 anos após a abolição da escravatura, ainda é comum tomarmos conhecimento acerca de trabalhadores sendo escravizados, principalmente em atividades no campo, relativas ao agronegócio. Segundo cálculos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), há cerca de 25 mil trabalhadores laborando sob condições subumanas, sem direito a água potável, alojamento, salário e, o mais absurdo, com o direito à liberdade de ir e vir cerceado. São, em sua maioria, semianalfabetos e negros. 125 anos depois!

Índices de violência

(Ilustração: Laerte)

Outro dado alarmante que recai com maior força sobre a população negra brasileira diz respeito aos indicadores de violência. A mortalidade de jovens negros entre 15 e 29 anos é três vezes maior do que entre jovens brancos. Segundo estudo do IPEA de 2011, intitulado Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira, em 2001 e 2007 – anos pesquisados - a principal causa externa de morte na população negra foram os homicídios, responsáveis por aproximadamente 50% dos óbitos. O grau de vitimização da população negra é assustador! Há uma probabilidade 103,4% maior de um negro ser vitimado do que um branco. Quando se analisa só a faixa etária dos jovens de 15 a 25 anos, essa probabilidade aumenta para 127,6%. 

Segundo pesquisa mais recente do IPEA, divulgada em 2013, a probabilidade de um negro ser vitimado é 135% maior do que um branco: enquanto a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes, no caso dos brancos, a relação é de 15,5 por 100 mil habitantes. Ainda segundo o mesmo estudo, "a cor negra ou parda faz aumentar em cerca de 8% a probabilidade de um indivíduo ser vítima de um homicídio. Isso tem como consequência uma perda de expectativa de vida devido à violência letal 114% maior para negros. 

Em suma, com esses números alarmantes, constata-se que a violência homicida no Brasil tem rosto e cor: jovem, negro, morador da periferia das grandes cidades.

Acesso à educação
No que diz respeito ao acesso à educação, a situação se mantém extremamente desigual. Segundo o IBGE (2010), 70% dos 14 milhões de analfabetos do país são negros. De acordo com o pesquisador Kabengele Munanga, em Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil:um ponto de vista em defesa de cotas, a situação é tão desfavorável à população negra que se, hipoteticamente, por um passe de mágica, os ensinos básico e fundamental melhorassem seus níveis para que os estudantes de escola pública pudessem competir em igualdade de condições no vestibular com alunos de colégios particulares, os estudantes negros levariam mais de três décadas para atingir o atual nível dos alunos brancos.  No ensino superior, o quadro é também bastante excludente. De acordo com pesquisa de 2011 da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) sobre o perfil dos estudantes de graduação no Brasil, constatou-se que apenas 8,72% dos estudantes são pretos, ao passo que os brancos representam 53,9% desse universo, e os pardos, 32%.

(Ilustração: Angeli)

Como se percebe, a questão racial naturaliza e contribui para o enorme fosso de desigualdade no Brasil. Há um claro desequilíbrio de oportunidades de acesso às diversas esferas da sociedade. Todos os indicadores sociais apontam para um deletério quadro de vulnerabilidade social da população negra brasileira, seja no mercado de trabalho, no acesso à moradia urbana, à terra, à educação e à justiça.

A mobilidade social do negro no Brasil - ou seja, sua ascensão social em relação ao conjunto da sociedade - continua em patamares residuais. O que se conclui dessa realidade é que, apesar dos tímidos avanços sociais obtidos na última década, a situação da população negra no Brasil continua extremamente vulnerável. Se nada de concreto, que fuja às soluções fáceis e politiqueiras, for feito no sentido de reverter esse quadro social de marginalização e exclusão, a abolição da escravatura no Brasil, para a população negra principalmente, nunca passará de um mero acordo de congressistas no século XIX que chegaram ao consenso de que um outro modelo de exploração, que não o escravista, era dali para frente mais lucrativo a eles, parlamentares, e aos senhores feudais da época, os latifundiários do café.