quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O cinegrafista Santiago, a gari Cleonice e você: qual morte vale mais?

Charge: Latuff
Artur Pires

Santiago Andrade, o cinegrafista da Bandeirantes atingido acidentalmente por um rojão lançado por um manifestante no Rio de Janeiro, está morto. É extremamente doído que alguém faleça durante uma manifestação. Lamentável! No entanto, essa não é o primeiro óbito desde que irromperam passeatas Brasil afora, em junho de 2013. Segundo a compilação de Eduardo Sterzi, morreram também “a gari Cleonice Vieira de Moraes, em Belém (PA), vítima do gás lacrimogêneo lançado pela polícia militar; 13 mortos na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré (RJ) – neste caso, a imprensa sequer se deu ao trabalho de informar todos os nomes; o estudante Marcos Delefrate, de 18 anos, em Ribeirão Preto (SP), atropelado por um carro que furou um bloqueio de manifestantes; Valdinete Rodrigues Pereira e Maria Aparecida, atropeladas em protesto na BR-251, no distrito de Campos Lindos, em Cristalina (GO); Douglas Henrique de Oliveira, de 21 anos, que caiu do viaduto José Alencar, em Belo Horizonte (MG), por ter sido acuado pela polícia militar; o marceneiro Igor Oliveira da Silva, de 16 anos, atropelado por um caminhão que fugia de uma manifestação, numa ciclovia próxima à Rodovia Cônego Domênico Rangoni, na altura de Guarujá (SP); Paulo Patrick, de 14 anos, atropelado por um táxi durante manifestação em Teresina (PI); Fernando da Silva Cândido, ator, por inalação de gás lançado pela polícia, no Rio de Janeiro; e, por fim, o senhor que foi atropelado por um ônibus, ao tentar fugir da polícia, na mesma manifestação em que o cinegrafista Santiago foi atingido – sobre esta outra vítima, nenhuma linha na imprensa”.

Muitas mortes, né? Mas você não ficou sabendo de (quase) nenhuma delas ou, quando muito, leu rapidamente uma notinha de rodapé num desses jornalões comerciais ou viu um informe de 10 segundos na televisão. Não se entrevistaram os pais, os cônjuges, os filhos, os amigos desses outros mortos. Não se repetiram reiteradas vezes imagens dos disparos policiais sobre os manifestantes, do lançamento de inúmeras bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, que, como visto acima, mataram manifestantes. Não vimos um editorial raivoso de William Bonner, no JN, contra a PM.

Pelo que se percebe, está claro que há uma deliberada seleção midiática de quais mortes devem render comoção nacional e quais devem ser varridas para debaixo do tapete. Queda evidente que, quando a violência policial é a responsável pelas mortes – o que já ocorreu!, há um acordo tácito midiático de mal informar o fato, além de fazê-lo esquecer de um dia para o outro. Quando a morte veio por um rojão lançado por um grupo black bloc (o que também é condenável, uma vez que aqueles que estão ali trabalhando não devem jamais ser alvos dos ataques dos manifestantes, mas sim as empresas que eles representam), aí a mídia usa de todo o seu poder de espetacularizar a notícia para convencer o senso comum de que, além de vândalos e baderneiros, os black blocs são, agora, assassinos. Aí vem o William Bonner e o William Waack, com seus cinismos habituais, condenar a ação violenta dos black blocs.

Charge: Latuff
Ora, não é por demais lembrar que diariamente – isso mesmo: diariamente! – policiais matam pessoas em todo o Brasil: são gente pobre, moradores das favelas. De acordo com dados do 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente, em média, cinco pessoas são mortas por dia no Brasil pela polícia, que vê o povo pobre, dos guetos, como um exército inimigo. Não é demais lembrar que há grupos de extermínio da polícia atuando em diversos estados brasileiros. Não é demais relembrar que o pedreiro Amarildo foi morto por policiais após ser levado para depoimento num quartel da Unidade de Polícia “Pacificadora” (UPP) da Rocinha, no Rio de Janeiro. E, sabemos, há diversos Amarildos “desaparecendo” cotidianamente nas periferias brasileiras após abordagens policiais, os chamados autos de resistência, que é um nome pomposo que a PM inventou para designar quando ela mata alguém – isso sem falar nas cifras ocultas que não entram nessa estatística.

Você já viu algum editorial da mídia discutir todo esse abuso policial? Debater toda essa carnificina nas periferias? Analisar a remoção violenta de milhares de famílias de suas casas para construção de obras relativas à Copa? Levantar a questão dos inúmeros atentados à liberdade e – vá lá – à Constituição que estão inseridos na Lei Geral da Copa? Viu uma linha sequer sobre o cerceamento do nosso direito de ir e vir nos dias de jogos da Copa? Não, você não viu! E você não verá! Você verá sempre o argumento rasteiro de que a Copa trará avanços para o país (quer discurso mais senso comum que esse?), a condenação dos manifestantes ativistas que se utilizam da tática da ação direta, e, por fim, quando houver óbito, a espetacularização da morte, desde que essa não tenha sido causada pela violência policial e do Estado. Reitero: há, deliberadamente por parte da mídia empresarial, a filtragem da morte que deve ser relevante, daquela que merece apenas uma notinha de rodapé e da outra – essa mais comum – que nem merece ser noticiada. Como se a vida do cinegrafista Santiago valesse mais do que a da gari Cleonice!

É completamente absurdo que a televisão e os jornalões impressos nos pautem a morte de quem devemos chorar. Choremos todos, por todas essas mortes, pelas que já ocorreram e pelas que virão. Nesse instante em que se lê estas linhas, a Polícia mata alguém na favela; alguém da favela mata alguém da classe média; os “alguéns” da favela se matam (de domingo, 9 de fevereiro, a terça, 11 de fevereiro, cinco jovens foram assassinados no Tancredo Neves na disputa pelo controle do tráfico de drogas na região); alguém da classe média dá uma de “justiceiro” e mata alguém da favela ou o acorrenta a um poste. Vivemos uma guerra fratricida cotidiana. A sociedade dominada pelo espetáculo é cada vez mais violenta, porque é cada vez mais desigual, mais excludente. Quem mora nos grandes centros não tem como fugir dessa barbárie, porque ela está impregnada no habitus dessas cidades, ela paira como poeira do tempo, sobre nosso tecido social. A violência, talvez, um dia também bata à sua porta, à minha. Vivendo aqui, nessa guerra, a morte pode também me alcançar. Mas ela jamais seria mais ou menos importante que a da Cleonice. Aliás, alguma morte vale mais que outra?

Viva as Cleonices e os Amarildos brasileiros!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O rolezinho e a segregação legitimada

(Charge: Latuff)

Artur Pires

Imagine aí a situação: você é negro e pobre, nasceu e cresceu numa favela. Em toda sua vida, dentre as opções de lazer, ir ao shopping nunca foi sequer cogitado. Não fazia parte de seu universo. Mas aí alguns amigos começam a ir, gostam da idéia e te convidam para um rolé por lá também. Você decide experimentar. E então sai de casa com amigos rumo ao shopping. Combinam de passear por lá, mirar as vitrinas, comer algo nas feéricas praças de alimentação desses recantos, ir ao cinema ou consumir o supérfluo – o tipo de consumo que ocorre nesses lugares. Você, enfim, está lá. Eis que, de repente, policiais militares (PMs fazendo rondas em shoppings já é, por si só, revelador de muita coisa – Pelo fim da PM, pela imediata desmilitarização da Polícia!) e seguranças dirigem-se a você e seus amigos e dizem grosseiramente que não podem ficar ali. Você se recusa a sair. E aí vem o pior: te expulsam a cassetadas, empurrões, tapas e xingamentos.

Essa cena não é imaginária como parece ser. Ela é real, concreta. Mas aí o leitor dá de ombros e diz que isso certamente aconteceu nos anos 50, no sul racista dos Estados Unidos – quem sabe no Alabama ou no Mississipi – ou talvez na África do Sul do apartheid. Mas não! A cena descrita aconteceu em São Paulo, Brasil, 2014, semana passada. E ocorreu também ano passado no Rio de Janeiro (RJ), em Vitória (ES), em Fortaleza (CE) – quem não lembra de jovens negros e pobres sendo expulsos na inauguração de um shopping na Parangaba? Infelizmente, esse fato enojante, de embrulhar o estômago, deverá ocorrer outras vezes, em outras cidades, e nas mesmas cidades novamente. Sabe por quê? Porque, para a sociedade das aparências, a favela não é bem-vinda no templo do consumo burguês. À favela, cabe ir ao shopping tão-somente para ser explorada atrás dos balcões do McDonald´s ou para limpar os banheiros.

Dentro da lógica consumista dessa sociedade, é claro que ela quer, sim!, que os pobres consumam, comprem, ostentem, mas quer assegurar igualmente que esse neoconsumismo da periferia não invada seus templos sagrados. “Como assim dividir espaço nos corredores iluminados dos shoppings com ‘favelados’? Que estes vão fazer suas compras no centro, no beco da poeira, que lá é o lugar deles! Hunf”, pensa nossa elite, empinando ainda mais o nariz. A sociedade brasileira é claramente segregada. Contudo, enquanto a periferia esteve cerceada, limitada às suas fronteiras suburbanas e aos locais “apropriados” para ela, estava tudo bem. Quando ela invade, sem pedir licença, os domínios territoriais exclusivos dos ricos, aí o mito do paraíso racial e de classe brasileiro vai para o brejo.

(Charge: Alpino) 
Para agravar esse quadro pintado com tintas carregadas de opressão, exclusão e marginalização atávicas, a ação da PM em São Paulo foi endossada pela Justiça (peraí, justiça?). Ou seja, a Justiça (justiça?) assinou o atestado de comprovação do apartheid brasileiro.  Há locais em que pretos e pobres não podem andar – é isso o que ela diz com essa decisão absurda! Essa mesma Justiça que abarrota negros e pobres – muitas vezes réus primários, ladrões de varal ou vapores do tráfico de drogas nas favelas - como sardinhas em lata no sistema prisional, ao tempo em que põe vendas nos olhos e é condescendente com os criminosos do colarinho branco – esses de paletó e gravata, que desviam e superfaturam milhões em obras públicas, que removem violentamente pessoas de suas casas em nome de uma organização mafiosa como a FIFA, que compram votos no Congresso Nacional e nas demais casas legislativas Brasil afora para se perpetuarem no poder, que fazem conchavos políticos por debaixo dos panos para engordarem ainda mais suas contas bancárias em paraísos fiscais…

Não percamos de vista que o Poder Judiciário é também um dos apêndices do segregacionismo brasileiro. Via de regra, age para manter o status quo, amparando e sendo generoso com a elite tupiniquim e, por outro lado, lançando sua mão punitiva contra a população dos guetos, sempre atendendo aos ditames do capital, porque, como disse Bourdieu, n´O Poder Simbólico, na atual configuração do sistema político mundial, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo estarão sempre a postos para obedecer ao senhor dinheiro. O sistema político está carcomido. O capital é quem canta o funk: “Tá dominado, tá tudo dominado”! O alardeado Estado Democrático de Direito é uma farsa medonha, uma falácia absurda que nos é empurrada goela abaixo diariamente e teatralizada a cada dois anos, nas eleições.

Voltando à questão central do texto, a polêmica dos rolezinhos tem a face positiva de trazer à superfície, de maneira incontestável, a densa segregação de classe e de raça que há no Brasil. Põe definitivamente uma pá de terra sobre o mito do paraíso racial e de classe brasileiro. Não há integração entre as classes sociais no Brasil. O (a) morador(a) da periferia só interage com o burguês quando vai recolher o lixo na casa deste, ou quando dá um “bom dia” da portaria do prédio onde trabalha, ou quando é empregada doméstica numa mansão, ou quando – consequência direta dessa desigualdade - aponta uma quadrada para a cabeça daquele!

"Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real
Minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele moleque de touca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa, você e sua mina
Um, dois, nem me viu: já sumi na neblina"

(Charge: Duke) 
Assim como na África do Sul do apartheid ou nos estados racistas estadunidenses da primeira metade do século XX, vivemos numa sociedade apartada, profundamente segregada. A relevante diferença é que o segregacionismo brasileiro é ainda mais eficaz, porque sorrateiramente transmite a idéia de que não existe. E é justamente esse véu que acoberta sua feição tenebrosa que o torna ainda mais eficiente e, consequentemente, mais nocivo. Entretanto, com o transbordamento da sociedade do consumo avançando em direção às comunidades periféricas, que antes não faziam parte dessa relação promíscua entre dinheiro e consumismo, vai ser cada vez mais difícil mascarar a tão marcante segregação social brasileira. “É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle).


Oxalá que essa explosão venha acompanhada de transformações profundas no estado das coisas e nos costumes sociais, bem como traga em seu bojo fagulhas com alto poder de combustão para a derrocada da onipresente estrutura econômica que a todo custo tenta nos impedir de sonhar. Queima babilônia! Como diria Ednardo (Pavão Misterioso), “eles são muitos, mas não podem voar”.