quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Contos da Cidade: Ou vai... ou racha!


(Foto: Divulgação/Amberg Filmes – “Meninos de Kichute")


*Artur Pires

Não, o título acima decididamente não faz alusão a nenhuma necessidade iminente de decidir-se sobre algo, de optar por algo ou qualquer coisa que os valha. É nada mais do que um trocadilho fuleragem para introduzir o assunto que as próximas linhas abordarão: o futebol na Cidade dos Funcionários.

Racha é a maneira como milhões de brasileiros se referem ao ato de jogar futebol, bater uma bolinha. A Cidade dos Funcionários é um bairro pra lá de propício a esta atividade. Hoje nem tanto, mas até alguns anos atrás essa banda de cá de Fortaleza agrupava mais campos de futebol do que qualquer centro de treinamento de time da 1ª Divisão do Campeonato Brasileiro. Era um campo a cada esquina.

Foi assim que o bairro se desenvolveu: em volta dos inúmeros campos de futebol que dividiam com as mangueiras, jambeiros e cajueiros a composição da paisagem verde desta área. É por este motivo também que a Cidade e adjacências (Tancredo Neves, Tasso, Vila Cazumba, Cajazeiras) abriga (ou abrigou, uma vez que alguns já fecharam as portas) diversos times suburbanos da capital: Fortalezinha, Cearazim, Vasquim, Juventude, Atalanta, Asas, Cifec, Leão Azul, Tancredo Neves, Internacional, Nacional e UGFC.

Lembro das primeiras vezes que, ainda menino véi de 9 ou 10 anos, experimentei sair de casa para jogar bola em algum dos campos aqui da Cidade. Joguei, desde então, numa dezena deles: no da Pague Menos (era assim chamado porque ficava atrás da farmácia homônima), no do IPEC, no do Asas, no campo dos conjunto, no campo das azeitoneiras, no lago, nos trenszim, no campo do terreno do Antônio Caixeira (ganhamos inclusive um campeonato nesse campo, que nos valeu, como prêmio, uma galinha de capoeira - ainda viva!) e, obviamente, no campo de areia da praça (que, infelizmente, não existe mais).  

De geração após geração, o costume de bater racha na Cidade dos Funcionários é mantido. Sagrado! Atualmente, o racha rola às segunda e terça-feira na quadra da pracinha, a partir das 19h. E não só restrito à galera da Cidade. Vem jogador do Tancredo Neves, da Vila Cazumba, do Jardim das Oliveiras, do Vila Verde e das Cajazeiras. Vez por outra, até do Cambeba, da Messejana e de outras áreas mais distantes.

O racha, quando jogado num clima de respeitabilidade e harmonia (caso do da Cidade), é um agregador coletivo potentíssimo. Em torno de jogar futebol, se reúnem pessoas de diferentes bairros. Mas o grande lance – com o perdão do trocadilho - é que os encontros de segunda e terça na Cidade não se restringem tão somente ao ato de bater uma bola. Não! Há, também, nas arquibancadas da quadra toda uma interação maior que vai muito além dos “10 homens correndo atrás de uma bola”.  Tem o momento “feijão verde” (se é que me entendem), antes e depois do racha, tem as tirações de onda, tem a prosa descontraída, tem a convivência com pessoas de outras quebradas que, certamente, se não fosse pelo racha que as leva até a Cidade, nunca as conheceria.

E sabe por quê?! Porque para jogar futebol bastar querer – e, minimamente, saber chutar uma bola! Não importa se é preto, branco, pobre, rico, magro, gordo, baixo, alto; o ato de rachar numa quadra de praça é extremamente democrático (não falo aqui desses campos de aluguel que custam 60, 70, 80 reais a hora). Sem exagero e sem pieguice: a Cidade dos Funcionários (e seus rachas), assim como outros movimentos no meio da rua vivenciados nesse bairro ao qual tenho forte sentimento de pertença, me deu muitos amigos, me trouxe muita convivência com pessoas diversas, me garantiu aprendizados importantes para minha construção humana.  Rachar é, aqui nas áreas, compartilhar!

Como diria o poeta, se o racha não existisse, teria de ser inventado!

UGFC

O time atual da Cidade dos Funcionários, que tenho orgulho de fazer parte, o União dos Grafiteiros Futebol Clube (UGFC), formado e treinado no racha da quadra, com 90% dos jogadores nascidos e criados no bairro, foi vice-campeão do recente Torneio de Futsal Interbairros disputados no último final de semana no Canindezinho, bairro da zona oeste de Fortaleza.

Após vencer times do Parque Araxá, do Bonsucesso, do Jardim Jatobá, do Mondubim e eliminar o time da casa (Canindezinho), fomos derrotados na final pelo Venturoso, do Pio XII. Vale destacar que o torneio tinha 24 equipes e éramos o único time de toda a regional VI. O UGFC foi campeão do Torneio Interbairros do Canindezinho em 2011 e tentava o bicampeonato. Quem sabe em 2013. Na galeria de títulos do UGFC, consta ainda um torneio disputado em 2011 na Parangaba.

*Artur Pires racha nos campos e quadras da Cidade dos Funcionários desde 1994

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A violência legitimada e a seletividade midiática*


(Charge: Latuff)

Por Artur Pires

Anote aí: ainda hoje, em qualquer noticiário midiático da imprensa empresarial, de qualquer parte do Brasil, você, leitor/ouvinte/telespectador, tomará ciência de, no mínimo, mais um caso da violência urbana que assola o país inteiro. As consequências da guerra civil que impera no cotidiano brasileiro são diariamente retratadas na mídia burguesa, que conta ainda com a espetacularização e a “venda” dessa tragédia social nos programas policialescos.

Mas e as causas? Sim, e as causas dessa violência desenfreada? Ah, essas são olvidadas, ou melhor, propositalmente cortinadas, escanteadas, relegadas às sombras. Não é do interesse da mídia empresarial discutir minuciosa e abrangentemente os porquês da escalada da violência nas metrópoles do país, uma vez que se se propusesse a levantar um debate holístico em torno dessa questão, se chegaria à conclusão de que o maior responsável pela barbárie social brasileira é o modo de produção hegemônico baseado no capital, que aprofunda desigualdades e cria duas realidades sociais: a dos que têm e a dos que não têm. Ademais, esse mesmo modo de produção garante e assegura aos grupos midiáticos empresariais o oligopólio na produção, na distribuição e na veiculação da comunicação no Brasil.

A sociedade brasileira, inoculada pelo veneno deletério da imprensa venal, legitimou e, pior ainda, naturalizou a mais cruel das violências, a da exclusão. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões de brasileiros morando em barracos de pau, papelão e lona nas inúmeras favelas que grassam pelo país. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões de brasileiros dormindo em cima de papelões, embaixo de marquises e viadutos. Nesse exato momento, enquanto se lê essas linhas, há milhões – isso mesmo, milhões! - de brasileiros catando lixo para comer e sobreviver, disputando seu café-da-manhã, almoço e janta com gatos e cachorros em feiras, praças e calçadas. São milhões de brasileiros vivendo à míngua, sem o mínimo de dignidade. O mais aterrador de tudo isso: esses brasileiros são vistos diariamente nas ruas, sinais de trânsito e praças das grandes cidades, mas ainda assim permanecem invisíveis aos olhos dessa sociedade marcada por contrastes. Esta mesma sociedade que, quando muito, dá um trocado para o pretinho que faz malabarismos com bolinhas no semáforo e em seguida ruma para sua casa com cercas elétricas e um rottweiler à espreita do ladrão – e lá encastela-se – com a consciência tranquila de que fez uma “boa ação”.

À imprensa empresarial (leia-se Globo e sua filiadas em todo o Brasil, Folha de S.Paulo, Estadão, Veja, etc.), não é interessante abordar essa violência cotidiana e degradante que massacra milhões de brasileiros em favor de uma elite aristocrata de nariz empinado e de uma burguesia classe-mediana moralista e conservadora, cujo lema é “bandido bom é bandido morto” (lógico, desde que o bandido não seja o playboy que ateia fogo no índio nem aquele que se diverte espancando mendigos, gays e prostitutas) e que sonha em viajar para Miami para comprar roupas de grife baratas.

(Charge: Clóvis Lima)

A tragédia da exclusão, da desigualdade e da miséria é escandalosamente ignorada. Quando vem à tona, emerge sob a forma da criminalização da pobreza. Para a mídia burguesa, o bandido no Brasil tem cor, classe social e residência: é preto, pobre e mora na periferia. Ao modus operandi do Partido da Imprensa Golpista (PIG), é necessário construir este estereótipo do criminoso para, maquiavelicamente, sombrear a real causa da violência. É por isso que mídia e sociedade aplaudem quando a PM invade favelas e mata traficantes – muitos destes já rendidos - e, em maioria, extermina à revelia moradores que não têm participação nenhuma nessa guerra. É por este mesmo motivo que mídia e sociedade cantam loas à invasão de morros cariocas pela Polícia e pelas Forças Armadas. Afinal, essas favelas precisam ser “pacificadas”. Agora, dizem eles, essas comunidades “viverão em paz e libertas do tráfico”. Primeiro, paz sem voz, não é paz, é medo, já diria o Rappa. Segundo, libertas do tráfico? Ora, quem acredita nessa história da carochinha de que o tráfico acabou nas comunidades invadidas vai acordar no dia 25 de dezembro e olhar debaixo da cama o presente deixado pelo Papai Noel! O tráfico continua a existir abertamente, com a diferença de que agora a PM abocanha parte generosa do lucro da atividade, que antes era exclusivo aos traficantes. Mas isso, ah, isso não é motivo de pauta para o PIG. À imprensa burguesa, é bem mais pertinente aplaudir as UPPs e referendar a domesticação das comunidades invadidas aos padrões do status quo vigente.

A bem da verdade, enquanto se lê essas linhas, centenas – quiçá milhares – de brasileiros que moram em favelas, principalmente jovens negros, estão sendo mortos, seja por disputas entre gangues rivais, seja, em sua maioria, pela PM (a polícia brasileira é a que mais mata no mundo; mais do que o Exército fascista de Israel e o governo sírio juntos). É como diz o Racionais MC’s, “assustador é quando se descobre que tudo dá em nada e que só morre o pobre”. Esses jovens são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de uma violência legitimada pelo Estado e endossada pela sociedade. Mas ninguém os vê. Afinal, eles estão lá, no outro Brasil, aquele da miséria, da indignidade, da invisibilidade. A sociedade não se importa com o banho de sangue diário, com a tragédia cotidiana pintada em vermelho nas periferias brasileiras. Não há comoção nacional para esses casos.

Mas experimente um desses jovens se revoltar da sua realidade miserável e violenta, resolver arrostar o estado das coisas e partir para o confronto direto, armado. Experimente esse jovem assaltar e, pelo calor das circunstâncias, matar aquele mesmo playboy que ateia fogo no índio. Ah, certamente a mídia, com seu moralismo reacionário, dedicará editoriais e páginas inteiras de seus veículos para denunciar a violência no Brasil, usando, como exemplo, o caso do favelado que assassinou o burguês. O caso se transformará rapidamente em comoção nacional. Pessoas comentarão nas ruas, nas paradas de ônibus, à espera do metrô e, assim, a criminalização da pobreza será cada vez mais incorporada ao ideário e ao imaginário coletivo da sociedade brasileira.

(Charge: Latuff)

Vale deixar bem claro aqui que não se está defendendo a morte de quem quer que seja, seja ele rico, pobre, preto ou branco. Ou, muito menos, fazendo-se apologia ao crime. O que se traz à reflexão e se tenta desconstruir é esse discurso midiático altamente seletivo e moralizador, que filtra por classe social e etnia as mortes que quer mostrar, bem como seleciona, também por classe social e etnia, os “bandidos” que quer apresentar à sociedade. A morte de pobre apenas é destaque na imprensa convencional quando morrem, de uma vez só, mais de cinco. E sabe por quê? Porque chacina rende audiência, chacina “vende”. É triste, mas é a verdade!

Em suma, é imprescindível, portanto, que paremos de pensar a violência no Brasil presos ao padrão global, à la Capitão Nascimento, ou à desfaçatez e hipocrisia dos lixos televisivos policialescos. É imperativo que analisemos essa questão sob o prisma do profundo fosso social que aparta os inseridos a essa sociedade extremamente seletiva dos marginalizados por esse mesmo tecido social. Há, na verdade, bem antes dos atos violentos que tomamos conhecimento no noticiário, uma violência e uma omissão simbólicas, mas também reais, brutais e devastadoras, praticadas todos os dias contra o povo pobre - legitimadas pelo Estado e assinadas embaixo pela própria sociedade civil. A questão da violência em terras tupiniquins vai muito além do maniqueísmo "mocinho(a)" x "bandido(a)" que a mídia, a todo momento, nos impõe. Como diria a sabedoria popular, o buraco é mais embaixo! E como é!

Texto publicado no Observatório da Imprensa (edição nº 724) 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

*A falácia da democracia brasileira

Por Artur Pires

Todo domingo de eleição é o mesmo lugar-comum na cobertura midiática da chamada grande imprensa: os velhos e bastante explorados clichês vêm novamente à tona - tem a reportagem do (a) jovem de 16 anos que vota pela primeira vez e a do idoso (a) de mais de 70 anos que, mesmo em ambos os casos não sendo obrigados, fazem questão de exercer seus direitos. A “festa da democracia” é saudada como a menina dos olhos de dez em dez veículos jornalísticos da mídia convencional.

De fato, para as gerações que viveram a ditadura, o ato de ir às urnas é simbólico e significativo. Contudo, há uma série de questões que precisam ser descortinadas para que a democracia tupiniquim caminhe a passos largos no sentido de ser verdadeira e concretamente representativa do e para o povo brasileiro. Nessa seara, ainda há um longo percurso pela frente!

De antemão, o aprimoramento da democracia brasileira passa, necessariamente, por uma ampla e radical reforma política, que contemple a questão eleitoral, ou seja, que a reforma política traga também em seu bojo a reforma eleitoral.  Dentro desse contexto, quatro questões surgem como prioritárias no âmbito das mudanças necessárias e fundamentais para a construção da democracia do e para o povo: a não obrigatoriedade do voto, o financiamento público e igualitário das campanhas, a distribuição equânime de tempo para propaganda eleitoral no rádio e na tevê e, por fim, a validade do voto nulo.  Vamos aos porquês.

Fim do voto obrigatório - Uma democracia só consolida-se de fato enquanto consulta democrática quando o ato de votar deixa de ser uma obrigação e passa a ser um direito – que pode ser livremente exercido ou não. Não é razoável ao regime democrático que o cidadão seja obrigado a votar e, o que é pior, punido pelas leis eleitorais ao não exercer o voto. Primeiro, porque fere a liberdade individual que, supõe-se, cada brasileiro deva ter. Segundo, porque o voto obrigatório funciona, por sua vez, como um depositário nefasto e danoso de compra, barganha e venda de votos.

O fim do voto obrigatório representaria, se não o fim, no mínimo uma redução drástica na compra de votos, típica dos coronéis e oligarquias da República Velha, mas que continua atualíssima ainda em pleno século XXI, inclusive nas periferias de grandes capitais.

Exclusivo financiamento público e igualitário para campanhas políticas - Outra aberração da democracia (???) brasileira é o financiamento privado das campanhas, na qual funciona a lógica do “quem mais arrecada, tem mais chances de ganhar”. Empresas que pouco ou nada se importam com a coletividade ou com a construção de uma cidadania participativa fazem doações generosas de milhões de reais a candidatos que, amiúde, escondem a identidade dos doadores. Em troca de quê? Ora, ora, de vantagens e facilidades em licitações e contratos público-privados em um futuro próximo, caso seus candidatos sejam eleitos. É a velha máxima: uma mão lava a outra. Infelizmente, na maioria esmagadora das vezes, é essa regrinha básica e deletéria à democracia que dita o resultado final das eleições: campanhas milionárias quase sempre se saem vitoriosas. Só que não era para ser dessa forma. A política real se faz com sonhos e ideais, não com interesses obscuros e Reai$.

Em suma, a instituição do financiamento exclusivamente público para campanhas eleitorais com valores limitados e igualitários para os candidatos, provenientes de um fundo público suprapartidário, além da penalidade de suspensão dos direitos políticos àquele que usufruir de financiamento privado, bem como multas pesadas para pessoas físicas, jurídicas e entidades que financiarem estas campanhas seria um avanço extraordinário na busca pela consolidação e robustez da democracia brasileira.

Enquanto isso não ocorrer, o Brasil não se livrará das relações promíscuas entre políticos e empresários corruptores que, consequentemente, resulta na onda de corrupção que assola as esferas dos poderes legislativo, judiciário e executivo brasileiros. A implantação do financiamento público e equânime a todos como única forma de arrecadação de campanhas políticas esvaziaria grande parte do poder econômico e de influência dessas empresas doadoras e, principalmente, aumentaria consideravelmente as chances de vitória de candidatos não alinhados ao status quo.  

Distribuição equânime de tempo de propaganda política obrigatória no rádio e na tevê – É justo um candidato ter, no primeiro turno das eleições, quase 13 minutos de tempo no rádio e na tevê enquanto outros se espremem e se contorcem para poder divulgar suas propostas e programas de governo em mísero 1 minuto? Não, não é! Pois é o que aconteceu em Fortaleza e certamente em muitas outras cidades no país inteiro.

A desigual distribuição do tempo de propaganda política obrigatória não faz bem à democracia, posto que não equilibra as opções e não auxilia o eleitor na escolha, uma vez que não dá condições similares dos candidatos apresentarem seus projetos. Pelo contrário, induz o eleitor a escolher, quase sempre, entre os candidatos que têm mais tempo de rádio e tevê. É só fazer uma pesquisa dos prefeitos eleitos nas principais capitais brasileiras e perceber que quase todos tinham predominância do tempo de propaganda na mídia. Os candidatos do 1 minuto? Ah, esses quase nunca alcançam sequer 10% dos votos.

O critério para a distribuição do tempo de propaganda é, a meu ver, um tiro no pé. Um terço (1/3) dos trinta minutos é distribuído igualmente entre todos os concorrentes, enquanto que dois terços (2/3), a maior parcela, é dado de acordo com a bancada dos partidos e das coligações partidárias na Câmara dos Deputados. Ou seja, quanto maior a aliança com partidos diversos que tenham representantes na Câmara Federal, maior o tempo de propaganda eleitoral obrigatória. Foi essa aberração, de busca por mais tempo de rádio e tevê, que fez o PT rasgar mais uma página de sua história e aliar-se com Paulo Maluf em São Paulo em troca de algumas dezenas de segundos na propaganda eleitoral.

Em síntese, o fosso de desigualdade que separa o candidato dos 13 minutos daquele do mísero 1 minuto é prejudicial à justa escolha do eleitor e, portanto, nocivo à democracia. Ora, se a Justiça Eleitoral aprovou a candidatura de “x” candidatos para concorrer a um cargo executivo, que os 30 minutos de propaganda eleitoral obrigatória sejam, então, igualmente distribuídos entre todos. Melhor para a isonomia de propostas, melhor para a democracia.

A validade do voto nulo – Você sabia que mesmo se 99,99% dos eleitores de uma cidade decidissem anular seus votos, mas um único eleitor optasse por votar no candidato “y”, este seria o candidato eleito? Pois é. Parece completamente injusto, não é? Mas é assim que funciona a democracia (??) brasileira.


(Charge: Nando)


O voto nulo, como o branco, não é válido. Ele tem apenas valor simbólico! Ora, num momento tão importante, em que vou estar decidindo o futuro da minha cidade, do meu estado, do meu país, não quero um voto simbólico, quero um voto concreto, real, que tenha consequências reais. E que esse voto possa ser em nenhum candidato, mas na opção de anular um processo em que não me sinto representado por ninguém, através do voto nulo. Mas não. Aos eleitores, a nós, cidadãos, cabe tão somente escolher entre os candidatos que nos são impostos pelos partidos políticos. Se a maioria do povo brasileiro decidir que nenhum dos candidatos representa-o, que não está satisfeita com nenhuma das opções, mesmo assim vai ter de engolir goela abaixo algum deles. Isso mesmo: a nossa democracia é mais uma vez falha ao não possibilitar que o eleitor, votando nulo, anule um processo eleitoral. Isso soa tão absurdo quando se pensa nessa impossibilidade, mas é visto com tanta normalidade pelo campo político que é de impressionar.

Em suma, enquanto os homens de Brasília não tomarem a dianteira no processo de dar vazão a uma reforma política que contemple estes pontos levantados, entre muitos outros (como a tal da “governabilidade”, por exemplo, onde hoje só se consegue governar abrindo concessões a alianças escusas e partidos de aluguel e fisiológicos), a “festa da democracia brasileira”, tão alardeada pela imprensa burguesa, nunca passará de um arremedo maquiado e cortinado do que pode vir a ser uma verdadeira democracia participativa do e para o povo. Enquanto isso, vamos continuar brincando o joguinho do faz-de-conta... 

Texto publicado no Observatório da Imprensa (edição nº 719) 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

**Contos da Cidade: A periferia que se foi...


(Ilustração: Revista Siará)

*Artur Pires

É fato inconteste que Fortaleza viveu um acelerado crescimento demográfico, comercial e, principalmente, imobiliário na última década e meia. Bairros outrora periféricos passaram a fazer parte, também, em maior ou menor grau, do ampliado corredor de serviços e de especulação imobiliária da capital alencarina. A Cidade dos Funcionários, onde moro, é um exemplo concreto e hiperbólico dessa expansão desenfreada e mal planejada.

Quando cheguei em Fortaleza, em 1994, aos 9 anos, vindo de Limoeiro, mas já tendo morado também em Redenção e Assaré, no interior do estado, lembro que assustei-me com a grandeza da cidade à época. Na minha visão de menino interiorano, a capital era um monstro enorme, pronto para me engolir, caso me perdesse em sua imensidão. Tudo era exagerado, principalmente as distâncias. Estranhava demais ter de ir de carro para a escola e para o clube onde jogava futebol. Pior: não podia ir à praça próxima de casa andar de bicicleta, brincar de bila, pião ou empinar pipa, pois “Fortaleza não é como Assaré, Redenção ou Limoeiro”, diziam meus pais. Logo eu, já acostumado a fazer esses percursos a pé, pelas calçadas ou no “mêi da rua”. Aliás, andar de carro, na minha vivência interiorana, era algo pontual: só quando ia à AABB fazer natação ou acompanhar, com minha irmã, meus pais nas festas dos bancários ou, ainda, quando ia visitar a parentada querida em Barbalha, no Crato ou mesmo em Fortaleza.

Contudo, após o estranhamento inicial, aos poucos fui me acostumando não com Fortaleza, mas com a Cidade dos Funcionários. O bairro, com ares periféricos à época, ainda preservava o aspecto bucólico do interior que tanto me atraía, com ruazinhas estreitas de piçarra ou, quando muito, calçamento; vizinhos a conversar nas calçadas; e crianças jogando bola e brincando de carimba no meio da rua. Ademais, mantinha vivas na minha percepção de mundo as figuras do bodegueiro, seu Jacó, com sua carranca habitual; do leiteiro, seu Luís, a desfilar contente na sua carroça carregando gordurosos litros de leite de vaca; da verdureira, dona Otilha, com suas deliciosas beterrabas; do entregador de pão, seu Cosme, que diariamente deixava o carioquinha fresquinho na porta de casa; e do seu Nilo, da mercearia, que vendia à minha mãe a melhor galinha de capoeira da região.

No entanto, com o passar do tempo e o crescimento vertiginoso e desordenado de Fortaleza, a Cidade dos Funcionários foi sendo consumida pelo “progresso” predatório e deixando de lado, gradativamente, seus antigos costumes e personagens. As grandes cadeias de supermercados substituíram os pequenos comerciantes. O asfalto nas ruas tirou os vizinhos das calçadas para dar lugar aos automóveis e suas barulhentas buzinas. As brincadeiras das crianças, como o esconde-esconde e o pega-ladrão, foram trocadas pelas salas de bate-papo virtuais. O lago Jacareí, que antes servia para pescar e tomar banho, agora é só para olhar, tamanha a poluição.

Fortaleza continua a crescer. A Cidade dos Funcionários também. Não sei até quando. Só sei que, vivendo ainda no mesmo bairro, sinto saudade da periferia que um dia me acolheu. 

*Artur Pires é morador e amante da Cidade dos Funcionários
** Texto originalmente publicado na Revista Siará (edição nº 37, pag. 34, seção "Olhar sobre a Cidade")

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Há algo de podre no sistema político brasileiro


Enquanto o financiamento público não for adotado como única alternativa para doações de campanhas, a situação retratada acima vai teimar em existir não só no mundo dos quadrinhos (Charge: Ricardo Coimbra)

Por Artur Pires

Parafraseando Hamlet, famoso personagem shakespeariano, diria que há algo de podre na política brasileira. E como fede! Os homens de Brasília evitam pôr o dedo na podridão com medo do odor altamente desagradável subir às narinas nacionais, pois, sabido que é, até os desprovidos dos recursos olfativos seriam contaminados pela verdade fétida: a estrutura que sustenta o sistema político brasileiro é uma merda!

O nariz de cera acima é tão somente para contextualizar uma necessidade urgente no Brasil: a reforma política. Sim, uma reforma que extirpe definitivamente as anomalias existentes na política brasileira – que são muitas! Nem FHC tampouco Lula tiveram coragem para fazê-la. Dilma já caminha para o fim do seu segundo ano à frente do Palácio do Planalto e o assunto nem sequer foi posto em pauta pela presidenta.

Em suma, o sistema político-partidário brasileiro hoje caminha numa direção perigosa e sem volta, caso nada seja feito no sentido de impedir o avanço desse modelo. Os cargos políticos, que deveriam ser representativos do e para o povo, tornam-se cada vez mais meios de ganhar dinheiro fácil e perpetuar-se no poder, elegendo cônjuges, filhos, primos, tios, o periquito e o papagaio. Política, infelizmente, virou sinônimo de negócio para a maioria dos políticos e de corrupção para a maioria dos eleitores.

Aqueles que detêm a máquina de governo em suas mãos, seja municipal, estadual ou federal, fazem de tudo para manterem seus reinados, lançando mão, muitas vezes, de métodos escusos para tal fim. Mas por quê? Ora, porque o poder embriaga, já dizia Maquiavel no século XVI. Os fins justificam os meios? Penso que não. Na verdade, os meios que utilizamos para alcançar o fim é que dizem o que somos. Enfim, deixando a filosofia de botequim de lado, o fato é que em períodos eleitorais – e muitas vezes fora deles também - quem está no comando esquece-se de governar e usa de todas as vantagens que o poder propicia para se reeleger ou, quando não é mais possível a reeleição, eleger alguém de sua confiança e, assim, continuar mamando nas tetas da administração pública, feito bezerro esfomeado.

(Charge: Roko)

A questão central é que o sistema político, da forma como está posto hoje, privilegia o dinheiro em detrimento da real política, ou seja, de nada adianta ter idéias e propostas inovadoras, inteligentes, coletivas, agregadoras, pois, no frigir dos ovos, o que vale mesmo é a bufunfa; quem tem mais grana, leva. Infelizmente, é assim que é! Campanhas milionárias quase sempre se saem vitoriosas. Só que não era para ser dessa forma. A política não é isso, não pode ser reduzida a esta ótica do “quanto mais dinheiro, mais chances de ganhar”.  Política se faz com sonhos e ideais, não com interesses obscuros e Reai$.

Dentro desse contexto, uma aberração do nosso sistema político é o financiamento privado das campanhas. Empresas fazem doações generosas de milhões de reais a candidatos que, obscuramente, escondem a identidade dos doadores. Em troca de quê? Ora, ora, de vantagens e facilidades em licitações e contratos público-privados em um futuro próximo, caso seus candidatos sejam eleitos. É a velha máxima: uma mão lava a outra. Trocando em miúdos, empresas capitalistas não fazem doação, realizam investimento. Alguém duvida?

Nesse sentido, de todas as mudanças necessárias que deveriam vir no bojo de uma reforma política consistente e transformadora, o fim do financiamento privado das campanhas tem de ser prioridade. Este modelo de financiamento explica, em boa parte, a relação promíscua entre políticos e empresários corruptores que, consequentemente, resulta na onda de corrupção que assola as esferas dos poderes legislativo, judiciário e executivo brasileiros. 

No entanto, a arrecadação privada para campanhas conta com um lobby poderoso em Brasília, pronto para defendê-la a qualquer momento, pois estes lobistas sabem que a implantação do financiamento público e equânime a todos como única forma de arrecadação de campanhas políticas esvaziaria grande parte do poder econômico e de influência dessas empresas doadoras e, principalmente, aumentaria consideravelmente as chances de vitória de candidatos não alinhados ao status quo.  

Hamlet, se saísse da sua Dinamarca e viesse passear por estas bandas, diria que há algo de podre na estrutura política brasileira. Pois é. Recomenda-se tapar o nariz para evitar o pior.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

*Lei de Cotas nas universidades federais: passo gigantesco da educação brasileira


(Charge: Novaes)

Por Artur Pires

O assunto é de extrema importância, mas talvez tenha sido ofuscado pelo julgamento da Ação Penal 470, o famigerado “mensalão’, pela CPI do Cachoeira, pela greve dos servidores federais, pelas eleições municipais ou, ainda, pela novela global. Na verdade, o que tem saído na imprensa burguesa sobre a Lei de Cotas são sempre críticas, desaforos e inconformismos de representantes atuais da Casa Grande, em total descompasso com os anseios da Senzala. 

A mídia empresarial brasileira, endossada pela elite conservadora e por boa parte da classe média “metida a rica”, vomitou ferozmente todo o seu racismo e preconceito social após Dilma Rousseff – depois do papelão na greve dos servidores federais, até que enfim deu uma dentro, hein, presidenta? - sancionar a Lei de Cotas. “Vai piorar o ensino superior público brasileiro”; “acabou a meritocracia como critério de seleção nas universidades”; “o problema não é a universidade, mas o ensino de base”; “é um tiro no pé, pois só vai aumentar o racismo e o preconceito contra alunos de escola pública”, entre outros, foram alguns dos argumentos tacanhos reiteradamente explorados pelos arautos defensores da educação de privilégios travestidos de jornalistas e analistas políticos.

O que causou tamanho chororô nas hostes conservadoras foi o fato da Lei de Cotas reservar 50% das vagas nas universidades e demais instituições de ensino superior federais para alunos oriundos da rede pública, ou seja, 120.000 das cerca de 240.000 vagas nestas instituições federais terão de ser – obrigatoriamente - destinadas a estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Dentro desse universo de 50%, 25% serão reservados a alunos que possuem renda familiar mensal igual ou inferior a um salário mínimo e meio, valor hoje em torno de 933 reais. Os outros 25% se destinarão a estudantes negros, pardos e indígenas, de acordo com a proporção populacional dessas etnias em cada estado brasileiro. As universidades brasileiras terão quatro anos para se adequar à nova lei, sendo que em 2013 elas já têm a obrigação de reservar 25% das vagas aos cotistas.

Desta forma, está absurdamente claro que a lei, ao ombrear as condições de acesso à educação superior entre o ensino particular e o ensino público, entre o rico e o pobre, entre o branco, o negro, o pardo e o índio, representa um passo gigantesco da educação brasileira, no sentido de democratizar as oportunidades para todos, independente das condições econômicas e étnicas – que sempre serviram para aprofundar o fosso das desigualdades sociais e raciais -, a partir da perspectiva de igualar os historicamente desiguais. O pior cego é aquele que não quer enxergar isso!

De fato, as cotas não são a fórmula mágica ou o truque final para eliminar as iniquidades brasileiras, que são parte da nossa estrutura social, principalmente no acesso à educação superior, mas são, certamente, um dos meios mais eficazes de mitigá-las em curto e médio prazo, sendo extremamente necessárias no atual contexto, portanto. Decerto, as cotas não atacam a raiz do problema, o cerne da questão, posto que esta solução repousa em um amplo programa nacional suprapartidário de investimento maciço e de revalorização do ensino público, desde as creches, passando pela séries alfabetizantes, pelos ensinos fundamental e médio e desembocando, finalmente, nas universidades. Dentro desse processo, os professores precisam igualmente ser bem mais valorizados, com salários muito além dos atuais e condições de trabalho dignas. O método de ensino-aprendizagem também teria de ser revisto, com a pedagogia freireana assumindo papel primordial nessa nova ideologia educacional. Sem sombra de dúvidas, um largo salto no desenvolvimento crítico-analítico dos estudantes seria possibilitado.

Contudo, essa geração de brasileiros e a próxima e, provavelmente, a que virá após a próxima não podem mais esperar esse dia chegar. À Senzala, urge que o Estado brasileiro lhe dê condições objetivas e favoráveis de arrostar a realidade com esperança de melhores dias, dignidade e sonhos. O discurso vazio e amargo de “um dia as coisas se acertam” não pode ser mais digerido. Não há mais espaço para tolerar, admitir e encarar como natural da sociedade brasileira o privilégio de poucos em detrimento de muitos! Há mais de quinhentos anos o tapete vermelho está estendido à Casa Grande, enquanto à Senzala cabe tão somente o papel de recolhê-lo e guardá-lo ao final da festa. Chega! É preciso, sim, criar mecanismos de reparação de desequilíbrios sociais atávicos. É preciso,sim, dar chance aos que nunca a tiveram. Cotas já!

Texto publicado no Observatório da Imprensa  (edição nº 712) e no Brasil de Fato

Postagens relacionadas:

 

Cotas raciais no Brasil: combatendo a desigualdade de cor

 

Por que o racismo ainda persiste?

 

Cotas raciais: políticas afirmativas para reparação de uma dívida histórica


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

*Contos da Cidade: A sexta-feira da praça


(Fotos: arquivo pessoal)

**Artur Pires 

Quem já teve a oportunidade de aproveitar a sexta-feira à noite de uma praça da periferia de Fortaleza vai entender um pouco mais do que vou falar adiante. Quem ainda não experimentou, está perdendo tempo! Pracinhas da periferia possibilitam o contato com tipos diversos, que fogem aos padrões homogeneizados, daqueles que dificilmente encontraríamos em nossas escolas, cursos, faculdades, condomínios… Têm também muitos personagens dos quais se podem captar incontáveis estórias e causos. Para além disso, têm muita gente boa e acolhedora, na maioria dos casos. Nas andanças que fiz pela cidade desde 1994, ano em que este menino matuto do interior veio morar na capital, conheci algumas delas: as do Jardim das Oliveiras, do Luciano Cavalcante, do Tancredo Neves, do Tasso, do Canindezinho, da Serrinha, da Verdes Mares, do Jardim Violeta, do José Walter, do Vila Verde, das Cajazeiras, do Pantanal, da Manibura, do Eusébio, do Pôr do Sol, do Itaperi, da Lagoa da Parangaba, umas três na Messejana, entre outras, que não vou recordar no momento em que rabisco estas linhas.

Entre tantas, uma tem, para mim, significado especial: a da Cidade dos Funcionários. Aí vocês vão dizer: - Mas a Cidade dos Funcionários não é periferia. No que prontamente respondo: - De fato, não é agora, mas já foi.

Bons tempos eram aqueles, até o final dos anos 90, em que a Cidade dos Funcionários ostentava no peito com orgulho o sentimento de pertença à periferia. Ruazinhas estreitas de piçarra ou, quando muito, calçamento; vizinhos a compartilhar suas conversas em cadeiras estrategicamente colocadas no “mêi das calçadas”; os “campim” de futebol a cada esquina - na mesma proporção dos terrenos baldios; a mercearia do seu Jacó; a barraquinha de pastel da dona Franci; a banquinha de bombons e cigarros do Manel; o clube do Ipec; os bares do Chiquim e do Pelé; a castanhola gigante da rua próxima à BR-116; os pés de azeitona preta espalhados por todo o bairro; a pesca de tarrafa no lago Jacareí; as corridas de cavalo no prado perto do Cambeba; a “mata de Greyscow”; as mangueiras e jambeiros a perder de vista e, claro, a sexta-feira da praça!

Sim, a sexta-feira da praça era um acontecimento que envolvia não somente os frequentadores assíduos da Cidade dos Funcionários, mas incluía também aqueles que vinham das redondezas: Parque Iracema, Vila Cazumba, Tancredo Neves, Manibura, Flor do Mato, Piçarreira, Jardim, Luciano, Castelão, Cajazeiras, Tasso e afins. As barraquinhas de bebida e espetinho de gato pé-duro (de siamês era mais caro) ficavam apinhadas. As cadeiras não davam conta de tanta gente que vinha à praça neste dia à noite. O jeito, para muitos, era beber em pé mesmo. Pessoas diversas confraternizavam suas angústias e frustrações, desejos e paixões, amores e dissabores, anseios e devaneios, e a sábia filosofia de bar, ao som do “forró da favela” e de muito brega para acalmar. De vez em quando, aqui e acolá, rolava um reggae, a pedido dos integrantes da União dos Grafiteiros (UG), que sempre marcavam presença.

Eu, em plena adolescência tinindo à flor da pele, me deslumbrava com tudo o que via, vivia, sentia, algo próprio da idade. Gostava de observar o movimento e as pessoas. Um dos que me chamava atenção era o Pancada: corpo franzino, cabelos escorridos de índio, pele negra, sorriso largo. Parecia sempre feliz. Tinha essa alcunha não porque gostasse de bater ou de apanhar, mas pelo costume que tinha de escutar muito funk no rádio, no tempo dos bailes do Agito Jovem e da Superdance. De tanto ouvir o locutor dizer: “Solta DJ mais uma pancaaaaaadaaaaa....”,  incorporou o nome devido ao gosto pela sonoridade da palavra e nunca mais largou. Nunca descobri o seu nome. Alguns dizem que é Artur, mas tenho lá minhas dúvidas se ele é mesmo meu xará. A mim, pelo menos, nunca revelou.

Pois bem, o Pancada, assim como muitos jovens da Cidade dos Funcionários, era mais um da UG. Gostava de ficar na praça feito macaco, pulando de galho em galho; digo, de barraquinha em barraquinha. Passava pela do Marujo, depois se escorava na do Chicute, na sequência trocava um “dedim de prosa” na da Lôra, vez ou outra tomava um burrim na da Shirley, mas a que ficava mais tempo era na do Carmênio, pois a parte de trás da barraca funcionava como o recanto da “perdição” (ou seria da “achação”?), no qual se juntava com os demais para tomar cachaça e, indiscriminadamente, fumar o matinho verde que tanto apreciava. Revezava-se entre os tragos de Ypióca prata e os de erva. Ao fim da noite, o vi algumas vezes indo embora no “piloto automático”. Para quem não sabe, o “piloto automático” é aquele instinto de sobrevivência que todo bebum tem, mesmo em casos de completa embriaguez, para conseguir chegar são (quer dizer, “são” definitivamente não!), mas salvo em casa.

Mas a praça da Cidade tinha personagens mais interessantes, como o Pio, por exemplo. O Pio era um cara que adorava cachaça (não muito diferente dos outros frequentadores do local), introspectivo, espontâneo e que tinha muitos amigos imaginários. Nunca se concentrava numa conversa com os “pracianos” ao seu redor, mas desembestava a falar com pessoas que só ele via. Dizem que de louco todos nós temos um pouco. No caso do Pio, ele tinha muito. Um dia, desapareceu e não foi visto por muitos anos. Alguns davam conta de que tinha ido parar no Mira y Lopez, outros diziam que havia morrido, mas depois de muitos anos o encontraram na praça do Liceu, na Messejana, ainda com o mesmo costume de conversar com seus amigos invisíveis.

Entre as figuras carimbadas da praça, tinha também a Nêga. Pense, mas pense numa mulher danada que derrubava qualquer cabra metido a “bebedor” de cachaça. Perdi as contas das vezes em que, bebendo com a dita cuja, muito pinguço pediu penico enquanto ela continuava lá, tranquila e serena, como se não tivesse entornado dezenas de doses cavalares de pinga goela abaixo. Incrível! Sem dúvida, se houvesse uma competição mundial de bebedores de cana, a Nêga ganharia fácil, fácil.

Tinha também o Sodom. O que o cara tinha de gente boa tinha também de arengueiro. Às sextas-feiras, chegava por volta de 7 horas da noite na praça, manso, tranquilo, afeito a brincadeiras e jogando conversa fora. O problema dele era a bebida. Depois que derrubava uns dois, três litros de cana, queria, então, derrubar os outros. Toda, mas toda sexta-feira o Sodom arrumava uma confusão, para variar. E não importava se fosse um amigo de longa data ou um mero desconhecido. Aliás, acho que ele encrencava mais com os amigos, que, cientes da recorrência da situação, faziam o jogo do “deixa quieto”, do que com desconhecidos. Eu mesmo já fui um dos contendores que tive o desprazer de vê-lo cismado comigo. Como amigo, deixei quieto também – vale dizer que espertamente, já que ele era bem mais encorpado do que eu à época. 

A praça tinha ainda o Alma de Gato, o Zé Aurélio, o Fonfón (que era fanho, daí o apelido), o Batata e muitos outros camaradas que dariam um livro maior que a Bíblia e o Alcorão juntos. Logicamente, com histórias nada sacras.

Hoje, a praça da Cidade ainda respira a brisa suave das centenárias mangueiras que compõem sua paisagem. Ainda há, sim, a convergência diária de muitos moradores do bairro até lá, que se cruzam na quadra de futebol ou nas barraquinhas de bebida e espetinho de gato pé-duro (de siamês continua sendo mais caro). No entanto, as sextas-feiras, que já chegaram a concentrar centenas – quiçá milhares - de pessoas por estas bandas da cidade, hoje são só mais um dia da semana como outro qualquer. Novos tempos.

Para mim, o convívio com tanta gente, alguns tipos bem parecidos comigo, outros bastante diferentes, me trouxe aprendizados diversos e valiosos que carregarei sempre comigo, sem pieguismos. Um deles é que a Cidade já foi ainda mais legal quando era um bairro distante do corredor comercial e imobiliário de Fortaleza. Um outro é que eu adoro um gatim tostado! Se vier com farofinha então, huummm.....

*Texto publicado no Portal Vermelho
**Artur Pires é morador da Cidade dos Funcionários e frequentador da praça

Postagens relacionadas: 

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Contos da Cidade: Uma noite no Canto das Tribos


O Canto das Tribos fez história e deixou saudade na cena regueira cearense (Foto: Paulo Maurício Bezerra)

* Artur Pires

O ano era 2001. Naquela tarde de sábado, Chiquim, todo animado, já limpava as mesas porque sabia que o bar certamente receberia os fregueses fiéis, como de costume. Papudins da velha guarda da Cidade, entre eles Néri, Seu Lúcio e Robertão, e uma dúzia de jovens com pouco juízo, mas mil idéias na cabeça assentavam-se, todo sábado, às cadeiras do Bar do Chiquim, nas proximidades da BR-116, na Cidade dos Funcionários.

Na mesa dos papudins, além da cachaça ou da cerveja gelada (essa mais raramente), os papos de sempre: Bartô Galeno, brega, Roberto Carlos, futebol, saudade dos “velhos tempos que não voltam mais”, mulheres, Reginaldo Rossi, jogo do bicho – e muita, muita boemia imiscuída dentro de cada assunto, compondo cada diálogo.

Na mesa dos jovens desajuizados, além dos celulares de Sapurara prata (a opção cerveja gelada nem raramente, pois a época era de vagas magras, esquálidas), também os papos de sempre: Racionais MC´s, Bob Marley, reggae, rap, futebol, surfe, sexo, drogas, rock'n'roll, pichação, saudade do tempo dos bailes funks, Sabotage, Gladiators, a sexta-feira da praça, jogo do bicho – e muita, muita sede por adrenalina, fome por experimentações as mais diversas, gana de descobrir o mundo e suas possibilidades infinitas. Eram exatamente isso: jovens, entre seus 16 e 25 anos, cheios de vida!

A inquietude e a subversão características dessa fase de transição entre a adolescência e a idade adulta estavam lá, marcando presença naquele grupo. Eram companheiras constantes e muito bem-vindas. Quase todos tinham codinomes, que assumiam com convicção e uma pitada de orgulho: Borel, Repolho, Sodom, Robô, Manko, Pitoco, Santo, Pancada, Lubinha, Gugu, Marrom, Carlim (que esteja em paz!), Plok, Coelho, entre outros. Todos moradores da Cidade dos Funcionários e integrantes da União dos Grafiteiros (UG). Todos fãs de reggae e, por isso, frequentadores contumazes do Canto das Tribos (para quem nunca ouviu falar no Canto das Tribos - existe essa pessoa? -, foi uma casa de shows nas proximidades do Dragão do Mar, na Praia de Iracema – era, a bem da verdade, um pequeno galpão no início e depois, já na sua segunda fase, quando se transferiu para um outro espaço que ficava ao lado do endereço inicial, virou um grande galpão - que surgiu em Fortaleza de meados para o fim dos anos 90. Tinha esse nome porque reunia tribos diversas, mas, principalmente, roqueiros às sextas e regueiros “guerreiros” aos sábados). Apresentações históricas marcaram o CDT: Gladiators, The Wailers, Gregory Isaacs, Eric Donaldson, Alpha Blondy, Adão Negro, Ponto de Equilíbrio, Racionais (que não é reggae, mas entra na cota), além das cearenses Rebel Lion, Dona Leda e Tribo de Leões são alguns dos exemplos, entre tantos outros.

Saindo agora do Canto das Tribos (já já voltaremos a ele) e retornando ao Bar do Chiquim naquela tarde de sábado, depois de cinco celulares de Sapurara prata nos “quengo”, já alcoolicamente “brisada”, a patota fechava a conta e ia para casa se preparar (leia-se tomar um banho rápido e jantar) para o reggae do CDT no sabadão à noite. Antes de pegarem o finado Paranjana 1 até o terminal do Papicu para tomarem outro cambão à PI, encontravam-se na praça para torrar um e, só aí, curtir a brisa no caminho até o reggae. Por isso, a disputa pelo assento da janela e, consequentemente, pelo ventinho na cara era árdua.

À época, à parte a cannabis e a cachaça, que nunca deixaram de ser apreciadas, a onda de 11 em cada 10 integrantes daquela turma era tomar “rocha”, o nome popular para o psicotrópico Rivotril. Seguiam todos “ripinados” e felizes da vida ao CDT. A leveza proporcionada pelo comprimido tarja preta misturava-se à da erva, dando-lhes uma sensação quase de flutuação. Na chegada à PI, uma rápida passada pelo Dragão para conferir o que estava acontecendo. No entanto, o que interessava mesmo ficava na Rua José Avelino, 42: o Canto das Tribos. Era lá que aqueles jovens sem juízo, mas muitas idéias na cachola sentiam-se à vontade para dançar, confraternizar e viver a essência reggae de “paz e amor”.

A sensação de liberdade e comunhão coletiva vivenciada naquele espaço é inenarrável. O CDT foi, no seu período áureo, entre 1998 e 2003, uma baforada de resistência roots em meio à babilônia que o rodeava por aquelas bandas da PI. Pretos, brancos, pobres, burgueses, gays, héteros, jovens, adultos, “muito-doidos”, caretas, homens e mulheres misturavam-se sem preconceitos e segregacionismos e, ao som de várias pedradas dos reggaes jamaicano, cearense, brasileiro e mundial, pareciam sempre levar a cabo a máxima de One Love, do rei Bob Marley. No entanto, quando rolava My Mind, do Hugh Mundell, na versão da Rebel Lion, desculpem o clichê, a galera ia ao delírio. Esse som foi e será o eterno melô do Canto das Tribos. Nunca uma música identificou-se tanto com um local e foi tão incorporada pelos regueiros como um símbolo do lugar do que a dobradinha My Mind e CDT. Quem viveu a época sabe, dizem as boas línguas. 

E os jovens desajuizados da Cidade? Bem, esses aproveitavam, ao seu modo, cada minuto daquela magia envolvente de música reggae, fumaça, muita fumaça, e troca de interações humanas que marcou o CDT. O coquetel molotov de cachaça, rocha e maconha provocava uma explosão de sensações, levando-os a um estado de percepção diferenciado da realidade. A busca pelo prazer era a regra, fosse ele mental, corporal, sensorial e outros “al”. Era uma coisa meio “Woodstock revisitado”. As portas da percepção escancaravam-se às suas frentes, pedindo apenas, se possível, um pouco de moderação. Pedido que quase nunca era atendido. Ou então não seriam quem eram.... irresponsáveis sonhadores à procura da “lombra” perfeita. Era o reggae troando e as sensações transcendendo-se: a combinação ideal buscada por aquela trupe. E assim seguia toda a noite, num misto de transe e euforia coletiva!

(Foto:  Paulo Maurício Bezerra )

O canto desordenado dos pardais trepados na grande mangueira que compunha a paisagem do CDT junto com os primeiros feixes de sol anunciavam a incipiente manhã que chegava. Era hora de voltar à realidade. E que retorno ao mundo real: de cara, era preciso força e coragem para encarar, na maioria das vezes em pé, o corujão lotado até o terminal. Meu deus!, de onde saía tanta gente para pegar ônibus em plena 5 horas da manhã? Vai saber! No terminal do Papicu, o caldinho de carne “pegando fogo” restaurava as energias perdidas durante a noite e preparava para o sono bom que viria na sequência. A volta, no finado Paranjana 2, bem diferente da ida, era de silêncio, sonolência e rebordose. A parada final era a praça da Cidade dos Funcionários. De lá, seguiam para suas casas, cansados e maltrapilhos, mas com uma única certeza: - No próximo sábado, tem mais! 

O Canto das Tribos encerrou suas atividades em 2005, mas as portas da percepção que ele abriu nunca mais foram fechadas!

* Artur Pires é mais um, entre tantos regueiros, saudoso do Canto das Tribos

Postagem relacionada: Contos da Cidade: Dedé, boemia e futebol