terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Democratização da comunicação x concentração midiática: ao ataque!

Sorria, você está sendo manipulado! (Charge: autor desconhecido)

*Por Artur Pires 

No Brasil, a imprensa empresarial, também denominada grande imprensa, domina, de modo quase que soberano, a produção e a veiculação daquilo que deve ou não ser noticiado na agenda midiática nacional. E mais: escolhe a dedo seus heróis e cria, com muita leviandade e nenhuma ética, seus vilões. Os maiores veículos do País, em termos de poderio econômico, se doutoraram nessa prática. Os movimentos de base e/ou sociais e qualquer luta advinda da massa trabalhadora são os seus alvos preferenciais.

A criminalização desses movimentos pela mídia é o carro-chefe de uma empreitada que visa a desqualificar qualquer atividade que parta da sociedade civil organizada ou do povo, que contrarie os interesses desses grupos. Esses veículos midiáticos usam de seu convincente poder de persuasão para ludibriar grande parcela da sociedade brasileira que, inoculada pelo veneno deletério das informações repassadas ao modo elitista e conservador, muitas vezes dá as costas a movimentos legítimos de defesa e luta do povo. 

Veículos de comunicação das famílias Civita (Grupo Abril/Veja), Frias (Grupo Folha), Marinho (Organizações Globo), Mesquita (Grupo Estado) e suas ramificações regionais (Grupo RBS no Rio Grande do Sul; Sistema Verdes Mares no Ceará – Grupo Edson Queiroz; Grupo Mirante no Maranhão - clã Sarney; e Rede Bahia no estado homônimo – família Magalhães, só para ficar em poucos exemplos) falam e fazem o que querem, à revelia, sem o mínimo compromisso ético-jornalístico com a verdade, pois são parte de um oligopólio na produção, na distribuição e na veiculação da informação no País.

Ademais, praticam indiscriminadamente a propriedade cruzada, que é quando o mesmo grupo controla diferentes mídias, como tevê, rádios e jornais. Na maior parte dos países que buscaram democratizar os seus sistemas de comunicação, há limites a essa prática por se considerar que ela implica numa menor diversidade de informação. No Brasil, infelizmente, ainda não existem limites. A propriedade cruzada só contribui e reforça a formação de oligopólios de comunicação, como os retratados acima.

O poder econômico, político e de influência desses grupos é tão grande e nocivo à democratização da comunicação que eles dão de ombros às iniciativas que procuram desmascarar toda essa conspiração do controle eterno; confiam nos seus lobistas poderosos em Brasília para não deixar passar nenhum projeto que ponha em xeque esse controle.

Mídia e seu ódio ao MST (Charge: Latuff)

A revista Veja, grande baluarte dessa mídia empresarial e ultraconservadora, é useira e vezeira no ofício de atacar todo e qualquer movimento social e sindical. Caso emblemático: quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) completou 25 anos, em 2009, esse ícone da imprensa empresarial brasileira fez questão de produzir matéria de capa que foi um verdadeiro libelo anti-MST. Acusando o movimento de capitanear a “falsa bandeira de sua incansável luta pela reforma agrária”, a revista afirmava que o “movimento conseguiu permanecer impune das ações criminosas que cometeu ao longo de sua existência”.

Contestando a revista dos Civita, a integrante da coordenação nacional do MST, Maria de Jesus dos Santos Gomes**, alerta que no momento há um “avanço da criminalização dos movimentos sociais, onde todos os meios de comunicação estão orquestrados nesse mesmo rumo”. Segundo Maria de Jesus, os movimentos de base, as associações de trabalhadores e a sociedade não podem ficar alheios a essa cruzada macarthista anti-movimentos sociais. “Tem de haver uma reação não só dos movimentos, mas de toda a sociedade”, assevera.

Endossando as palavras da coordenadora, o economista e membro da direção nacional do MST, João Pedro Stédile**, afirma que essa perseguição ocorre porque estes movimentos desafiam e contestam a ordem social vigente. “O MST é um mau exemplo para os capitalistas porque o MST está há mais de 25 anos sempre lutando”, diz. De acordo com ele, “a grande imprensa todo dia fala mal da gente para que o povo brasileiro se afaste do MST”. Stédile pontua que os “capitalistas” ainda usam o Poder Judiciário e a polícia para cerceá-los.

As palavras de Stédile são mais do que pertinentes quando analisamos a recente decisão da Justiça paulista no caso Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), quando a PM, após ordem judicial, expulsou com muita truculência e ojeriza a pobres, como de praxe, milhares de famílias de um terreno inutilizado. A área é da massa falida da Selecta, holding que englobava 27 empresas pertencentes a Naji Nahas. Segundo a Carta Capital, os representantes dos moradores do assentamento argumentam que a Selecta se apropriou indevidamente das terras, que antes pertenciam a um casal de alemães assassinado em 1969. A título de contextualização, Naji Nahas é um ex-megaespeculador financeiro conhecido por operações fraudulentas que envolviam uso de “laranjas”, bolhas especulativas e lavagem de dinheiro em paraísos fiscais. Foi condenado a 24 anos e oito meses de prisão em 1997, recorreu da decisão em liberdade para depois, em 2004, ser inocentado pela mesma Justiça (justiça?).

O que faz a mídia empresarial diante de todo o caso? O de costume, lógico. Age contra o povo, a favor dos donos do capital. Ou seja: se omite a esclarecer toda a ficha criminal pregressa de Nahas, além de também se esquivar a deixar claro que o terreno, de mais de 1 milhão de , por muitos anos esteve inutilizado, sem qualquer indício de ser aproveitado, o que caracteriza um latifúndio improdutivo e, portanto, passível de ocupação. Por fim, se presta ao papel de porta-voz do governador tucano paulista Geraldo Alckmin para dar espaço para ele ir à tevê e aos jornais dizer que “possíveis abusos policiais na desocupação serão investigados e, se comprovados, punidos”. Alckmin esquece que o Dia da Mentira é só 1º de abril.

Autor de diversos livros, entre os quais Comunicação Sindical - Falando para milhões e fundador do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), entidade com sede no Rio de Janeiro que promove cursos com foco, principalmente, na democratização da comunicação e na comunicação sindical, Vito Giannotti analisa que a “mídia empresarial” age sob esse modus operandi porque “sindicatos, movimentos populares, estudantis, movimentos como o MST ou os sem teto das cidades contestam a ordem existente”, a ordem social que a “mídia patronal” tenta conservar. Giannotti afirma que essa perseguição acontece porque o intento da mídia hegemônica é “criminalizar, condenar, pedir o extermínio de todo movimento contestador”.

O mais absurdo e revoltante de todo esse quadro de concentração midiática é que toda iniciativa que vise a democratizar e regular a comunicação, como o debate sobre a implantação dos conselhos estaduais de comunicação, é taxada pela “grande imprensa” de censura, tolhimento à liberdade de expressão, dentre outras falácias. O que essa mesma imprensa não fala e faz questão de esconder é que, em diversos países ao redor do mundo como os Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Espanha e até nossos vizinhos Argentina e Uruguai, onde o conceito de mídia é bem mais democrático, há órgãos reguladores de comunicação, que atuam, principalmente, no combate à concentração e na regulação do conteúdo.

Uma das maneiras de fugir dessa verdadeira ditadura imposta pela chamada “grande mídia” é democratizar a produção e o acesso aos meios de comunicação; afinal, o direito à comunicação não é privilégio de poucas famiglias que, de tão envolvidas em tramóias, conchavos e corruptelas, fariam inveja a Don Corleone. Hoje, várias iniciativas trabalham nesse sentido e já há conhecimento de fatos a partir de outros pontos de vista, através de agências de notícias, rádios comunitárias, jornais e revistas alternativas ligadas a movimentos sociais, organizações não governamentais, comunidades eclesiais de base etc.

Entre as entidades que trabalham por uma democratização da comunicação no Brasil, destaco a atuação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, organização formada por ativistas e profissionais com formação em Comunicação Social e outras áreas, com membros espalhados em 15 estados brasileiros e no Distrito Federal. Para quem não conhece, vale a pena dar uma fuçada no site deles e conhecer um pouco mais sobre a atuação, os projetos e as publicações dessa galera.

Contudo, o caminho a ser percorrido para a efetiva democratização dos meios de comunicação no Brasil ainda é imenso e espinhoso. Um bom início para essa longa jornada seria a rediscussão do próprio papel da escola na formação de estudantes com uma leitura crítica da mídia, algo hoje confinado tão-somente às paredes dos cursos de Comunicação Social... e olhe lá, dependendo da instituição, nem isso! À luta, pois! 

** As declarações da integrante da coordenação nacional e do membro da direção nacional do MST, Maria de Jesus dos Santos Gomes e João Pedro Stédile, respectivamente, foram obtidas para texto originalmente publicado na revista Nossa Voz (1ª edição/2010), da Associação dos Funcionários do BNB (AFBNB)


Abaixo, reproduzo, na íntegra, pequena entrevista realizada com Vito Giannotti, publicada originalmente na revista Nossa Voz, da Associação dos Funcionários do BNB (AFBNB), em 2010. A entrevista girou em torno da criminalização dos movimentos sociais:  (Foto: autor desconhecido) 

1 - Quais os principais argumentos utilizados pela grande mídia para criminalizar os movimentos sociais e/ou de base? 

Vito Giannotti: Antes de ver os argumentos, é interessante ver os motivos que levam a mídia empresarial a criminalizar os movimentos sociais. Não podemos usar tranquilamente a expressão “grande mídia”. Essas duas palavrinhas, além de já quebrar a moral de quem não pertence a este mundo, servem muito bem para esconder a realidade. A chamada grande mídia é grande sim. Do tamanho do capital dos seus donos.

Esta mídia tem dono. Este dono pertence a uma classe e esta classe tem interesses de classe a defender. Então vamos logo chamar esta mídia pelo seu nome: mídia empresarial, mídia comercial, mídia corporativa (das grandes corporações), mídia patronal ou simplesmente pelo nome mais clássico de mídia burguesa.

Esta introdução já dá a pista de porque esta mídia criminaliza os movimentos sociais. É óbvio. Porque sindicatos, movimentos populares, estudantis, movimentos como o MST ou os sem teto das cidades contestam a ordem existente. A ordem que toda a chamada grande mídia quer conservar.

Esta sociedade está ótima para os donos da mídia e uma pequena roda em volta deles. É por isso que tem que criminalizar, condenar, pedir o extermínio de todo movimento contestador. Toda greve será tachada de baderna. Provocará o caos. O desabastecimento será culpa da greve dos petroleiros. Se um velhinho vier a morrer na fila do gás, a culpa será dos grevistas. Não do governo que se recusa a cumprir o acordo firmado na última greve.

Toda ocupação de terra pelo MST será uma invasão praticada por vândalos, vagabundos, violentos, que invadem terras produtivas e não querem trabalhar.

Claro, qual é um dos pilares desta sociedade injusta , entre as mais injustas do mundo? É justamente a defesa da propriedade individual sagrada. Não a Reforma Agrária. Sempre. É esse o motivo de a mídia estar sempre em campanha para desqualificar, ridicularizar, condenar, enfim, criminalizar o MST. 

2 - Quais seriam as alternativas mais viáveis para conter essa criminalização dos movimentos por parte da grande mídia? 

VG: Há vários passos a serem dados para diminuir o estrago que a mídia empresarial faz contra os movimentos sociais. Primeiramente é necessário se convencer de que a mídia empresarial é isso mesmo. Ela faz o que quer. O que seu dono quer. Não há ilusões sobre a imparcialidade, neutralidade, objetividade da mídia dos patrões. A mídia tem lado. E é um direito dela batalhar para manter a sociedade como está. Ela faz isso com todas as armas. A ética é uma ficção. Não há ética na “grande mídia”. Por acaso qual é a ética numa guerra? É uma só. Matar o máximo de inimigos possíveis. É a mesma ética na mídia. Exterminar o inimigo de classe. Com mentiras, calúnias, omissões, distorções. Esta é a ética do capitalismo. O resto é ficção. Ilusão. Qual a ética nos tanques que invadem Gaza? Qual a ética num jovem imigrante clandestino nos EUA que se alista no glorioso exército estadunidense para ir ao Afeganistão matar gente? É assim que ele conseguirá sua bela cidadania. E a ética? A mesma da revista Veja que diz que “eram seguranças” os matadores de aluguel que foram mortos por acampados na fazenda Consulta, em Pernambuco, no final de fevereiro. Não, não eram seguranças. Só um era. Os outros estavam lá para matar. Pagos por quem? Qual fazendeiro os mandou lá matar? Isso a Veja não diz. E a ética jornalística.

E a missão do jornalista? Não há ética. Só a ética dos interesses do dono. O resto é conversa fiada. Depois de ter abandonado qualquer ilusão de implorar um comportamento ético, é possível tentar exigir a aplicação da legislação existente para se defender juridicamente. Mas, de novo sem ilusões. Um habeas corpus tira qualquer criminoso ou incriminado de qualquer prisão. Assim como a mídia é de classe, a Justiça também é de classe. Por acaso o juiz Lalau está preso? Por acaso ele teve que devolver o que seria dinheiro público? Só num outro mundo. 

3- Em que se baseiam os grandes veículos de massa do País para atacar movimentos legítimos de luta e defesa do povo? 

VG: Unicamente nos seus interesses e na sua força. E, sobretudo, no poderio da máquina de comunicação, composta por todas as televisões privadas, os jornais comerciais e as rádios.

É preciso uma nova ordem absoluta e total das concessões de radio e TV. É preciso que haja financiamento público, via propaganda de todas as formas de comunicação populares. Só assim os trabalhadores poderão comunicar suas idéias, sua visão de mundo.

Sem isso nos resta beber o que os Marinho, os Frias, os Mesquitas e toda a irmandade da “grande mídia” nos enfiam goela abaixo. 

4 - Grande parte da sociedade civil, por inconsciência ou falta de espírito crítico, acaba por cair na armadilha das notícias forjadas pelos meios de comunicação elitistas como Veja, O Globo, Folha, Estado de S.Paulo, dentre outros. Como a imprensa alternativa poderia reverter essa situação? 

VG: A imprensa alternativa precisa existir. É preciso perder as ilusões de ter um espaçozinho na “grande mídia” e criar sua própria mídia. Criar todo um mosaico de instrumentos de comunicação, do rádio à TV, do jornal ao cinema, das músicas à revista. Usar tudo: camisetas, broches, bandeiras, faixas e todo o arsenal da Internet, da página ao blog, do boletim eletrônico ao orkut, de um filme no youtube a um festival de samba, rock, ou funk. Tudo. 

Mas para isso é preciso se especializar muitíssimo. Não basta fazer qualquer comunicação. Nossa comunicação deve ser extremamente bem feita. Deve falar da vida, dos interesses da vida, e não de teses mortas. Deve ser muito atrativa, porque a mídia deles é muito bem feita. Eles têm dinheiro para tanto. Nós temos que aperfeiçoar sempre nossa comunicação. Cuidar desde a linguagem até a distribuição.

Se queremos mudar esta sociedade precisamos convencer milhares e milhões de que a sociedade que está aí não serve para a grande maioria. Ela é ótima para somente uns 20 ou 30%. Para o resto, é o desastre que conhecemos. Devemos mostrar que outra sociedade É POSSÍVEL. Que é necessária. E mostrar passos concretos para mudar esta sociedade desde suas raízes.

Ou seja: se contrapor a tudo o que a tal “grande mídia” defende. Se contrapor à Veja, à Época e todas as revistas irmãs. Se contrapor à Folha de São Paulo com sua defesa da “Ditabranda”, e a toda a mídia patronal, empresarial, comercial, burguesa. A vitória? A história caminha por séculos, não por dias ou meses. Mas, se não se fizer o que precisa ser feito hoje, o relógio da História atrasará.

*Artur Pires é jornalista e também total e veementemente a favor da democratização da comunicação no Brasil

Nota: Abaixo, compartilho o documentário da rede britânica BBC, “Muito Além do Cidadão Kane” (Beyond Citizen Kane, no original em inglês), de Simon Hartog. O documentário, de 1993, narra diversos momentos obscuros na história da Rede Globo, desde a sua fundação, através de uma parceria com um grupo estadunidense – algo proibido pela legislação brasileira -, passando pelo seu apoio à ditadura militar; pela cobertura falaciosa das Diretas Já, quando a emissora transformou um grande comício pelas eleições diretas numa comemoração pelo aniversário de São Paulo; pela edição do debate vergonhosamente favorável ao então candidato Collor na eleição presidencial de 1989, na qual enfrentava Lula; entre outras maracutaias da toda-poderosa. O documentário é proibido de exibição no Brasil desde 1994, após determinação da Justiça (justiça?). 



quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O garoto por trás do ‘doze’*

Falta de oportunidades mais dinheiro fácil é a equação perfeita para a escolha de muitos jovens da periferia pelo caminho do tráfico (Fotos: Chico Célio)

**Por Artur Pires

Negro, de pele bem escura, 1,70 m de altura, bastante franzino, daqueles em que as costelas saltam aos olhos e a magreza notória afunda até mesmo a maçã do rosto, Rafael (nome fictício) não se deixa suplantar pela sua aparente fragilidade física. O jovem P.S.F.S., iniciais da verdadeira identidade de Rafael, aos 21 anos, já é um dos principais vendedores de droga da comunidade da Vila Cazumba, na zona sul de Fortaleza, próximo à Cidade dos Funcionários. Como de praxe, por sua “função” dentro da comunidade, Rafael tem prestígio, impõe respeito e, até mesmo, medo, mesmo sem querer, a muitos dos moradores. “Às vezes, noto que uns e outros me olham meio de rabo de olho2, com medo ou sei lá o quê”, diz Rafael. E completa: “Mas a maioria me trata bem, na limpeza3”.

A comunidade da Vila Cazumba, onde Rafael nasceu, cresceu e vive até hoje, começou a surgir entre o fim da década de 70 e o início dos anos 80, quando o Tancredo Neves, favela vizinha e uma das maiores de Fortaleza, já apresentava barracos apinhados, colados uns aos outros, que se expandiram rapidamente para os lados de forma inconsequente e não planejada. Dessa expansão do Grande Tancredo Neves surgiram comunidades à sua volta, como as favelas do Gato Morto, do Tasso, do Vila Verde e da Vila Cazumba.

É nessa realidade que vive Rafael. O jovem é o terceiro de uma família de quatro irmãos, criados por dona Aparecida, sua mãe. Perdeu o pai, seu Abreu, ainda muito novo, aos cinco anos, mas nem por isso deixou de ter uma figura paterna que o inspirasse e influísse na sua escolha de vida. Seu tio, Ricardo, que morreu há pouco mais de dois anos, o criou como um filho, pois morava vizinho ao garoto. Na periferia, ainda é bastante comum que famílias de irmãos morem próximas umas das outras. “Ele foi mesmo que um pai: brigava comigo, me batia, mas me ensinou muita coisa também”, afirma o jovem. “Eu acho que ele gostava também muito de mim porque só tinha filha mulher; eu era o sobrinho que ele mais gostava, eu acho, né!”, completa, saudoso.

Ricardo ‘Rolão’, como era conhecido o tio de Rafael, foi por muitos anos o principal vendedor de drogas da Vila Cazumba e um dos principais do Grande Tancredo Neves. Não queria que o sobrinho seguisse o caminho do tráfico, mas também não fazia esforço algum em esconder do ainda menino, e dos outros familiares, que a atividade que sustentava a família era o comércio de drogas. Pelo contrário, a venda era feita a céu aberto, na porta de casa. “Ele era muito respeitado pelos moradores aqui da Vila; não tinha como esconder da gente que ele arrepiava4, pois os caras vinham aqui direto pegar (drogas)”, explica Rafael, que desde cedo, através do exemplo de seu tio, viu no tráfico de drogas um caminho real e perfeitamente possível de ganhar dinheiro fácil.

Como na grande maioria dos casos, Rafael foi mais um garoto da periferia que escolheu essa sina espelhando-se em exemplos próximos à sua volta. No seu caso, o tio, mesmo sem nunca tê-lo incentivado, foi um modelo a ser seguido. “Eu via que só fazendo aquilo ele sustentava a família dele e ainda ajudava a gente também”, explica. E foi exatamente após a morte de ‘Rolão’, assassinado por traficantes do Tancredo Neves, que Rafael decidiu entrar de vez para a guerra.

Segundo ele, não foi muito difícil arrumar um “canal5” para comprar a droga em grande quantidade para, então, repassá-la. Contudo, prefere não revelar o local. No começo, conta, “só vendia maconha, mas o que tava ganhando era muito pouco, não dava quase nada pra mim”. Os papelotes de maconha, ou as ‘balas’, como são comumente chamadas, são vendidos a dois reais cada, o que gera uma receita líquida muito pequena para quem trafica. Percebendo que o lucro gerado com a venda de maconha não estava sendo suficiente, o jovem decidiu começar uma empreitada mais perigosa, porém com lucros que chegam, em média, dependendo de circunstâncias específicas - como o tamanho da clientela e a quantidade de mercadoria - a 400%, 500% ou mais do investido inicialmente: a venda de crack.

O crack é um subproduto da cocaína que está completamente disseminado nas periferias brasileiras e avança também, a passos largos, em direção à classe média. Estudos e pesquisas de diversos órgãos que lidam com dependentes químicos têm mostrado que, nas clínicas de reabilitação particulares, em média, mais de 80% dos pacientes estão internados por dependência ao crack. Nas clínicas públicas, esses índices ultrapassam os 90%. Dessa forma, fica claro que para qualquer traficante que se utilize da venda dessa droga, que custa cinco reais uma unidade, tem-se a certeza de usuários em potencial aos montes. Outro fator que faz ser comum entre os traficantes a venda do crack é que o usuário dessa droga não se contenta com apenas uma “pancada6”, pois esse subproduto da cocaína tem efeito rápido e altamente viciante. “Já teve dia de maluco gastar mais de mil reais só aqui comigo; outros já deixaram televisão, som de carro, DVD, relógio, anel de prata, cordão de prata, de ouro, um monte de coisa”, conta Rafael.

O jovem diz, com sinceridade e inconsciência, não se incomodar por estar vendendo uma droga com alto poder destrutivo ao usuário: “Nem penso nisso, se o cara vem até aqui pegar é porque ele quer; só estou fazendo o meu adianto7”. Uma vez por semana, vai até seu “canal” e adquire uma nova remessa de crack. A quantidade varia de uma semana para outra, dependendo do quanto ainda tem disponível no estoque, mas, em média, compra semanalmente entre 40 e 50 gramas da droga. Para clarear as ideias, 5 gramas de crack são vendidos, em média, a 120 reais. Quando comprada em grande quantidade, esse valor diminui para 100 reais. Portanto, o jovem Rafael, que estudou somente até o 1º ano do Ensino Médio e nunca trabalhou com outra coisa que não fosse o tráfico de drogas, administra, por mês, uma quantia que varia entre 3.200 e 4.000 reais. Muito? Rafael solta uma espontânea gargalhada, se recompõe e esclarece que não: “É uma micharia8! Tem doze lá no Tancredo que tem é casa duplex, carro, dinheiro no banco”.  

A maioria da clientela do jovem é formada pelos próprios moradores, mas, segundo ele, os clientes mais lucrativos são os “playboys9”, que normalmente compram a droga em grandes quantidades. Durante a entrevista, feita no local onde sempre “despacha10”, diversos usuários surgiram, sem cerimônia. O garoto negocia a droga com a mesma naturalidade de um comerciante que vende laranja na feira. O tráfico na favela não pára. Segundo ele, o movimento é intenso durante todo o dia, inclusive no decorrer da noite. Para Rafael, o pior de vender “pedra11” é ter de ficar acordado durante toda a madrugada, “hora em que aparecem os bruxos12 e o movimento aumenta”. Por conta dessa rotina, diz que acorda somente depois do meio-dia para “trabalhar”.

O jovem, obviamente, não é o único traficante da Vila Cazumba. Mas, como faz questão de frisar, “é o que está arrepiando mais na área”, orgulha-se. No entanto, diz que os outros não sentem inveja, relaciona-se bem com todos. Pelo menos no momento, os traficantes da comunidade convivem num clima respeitoso e pacífico. O grande problema mora ao lado. Mais especificamente, cruzando a Avenida José Leon, que marca a divisão entre a Vila Cazumba e o Tancredo Neves. Historicamente, os traficantes das duas comunidades vivem numa guerra pelo controle do comércio de drogas na região. Há momentos, meses até, em que impera o armistício, mas é preciso apenas uma “mancada13” de um dos lados para a batalha recomeçar a pleno vapor. Essa disputa já ocasionou várias vítimas fatais, entre elas o tio de Rafael, Ricardo ‘Rolão’, que, como dito anteriormente, foi morto por traficantes do Tancredo Neves. Fogos de artifício rasgam o céu da região quando há a morte de algum traficante, seja da Vila Cazumba, seja do Tancredo Neves. Os fogos são uma espécie de ritual que eles incorporaram a essa guerra insana. “Já perdi uns camaradas14, mas é isso mesmo”, resigna-se Rafael, num misto de frieza e tentativa de apagar da memória as lembranças dos amigos perdidos. 

Assim como com os traficantes do Tancredo Neves, o relacionamento com a polícia é difícil. Rafael conta que a corporação sabe que o comércio de drogas ocorre na favela e, por conta disso, “come o troco15” de muitos como ele. Aquele que não paga o suborno aos policias corre seriamente o risco de ser preso e ter seu negócio fechado, derrubado. “Se não pagar o troco aos homem16, a casa cai17”, diz o jovem. Os policiais passam no dia combinado e saem recolhendo os subornos; em contrapartida, fazem vistas grossas ao comércio de drogas que acontece cotidianamente na favela. 

Quando indagado se também faz uso da droga que vende, se surpreende e é enfático: “Tu é doido? Traficante que usa pedra, tudo o que ganha vai só pra alimentar o vício”. Mas admite que fuma maconha e, “de vez em quando, no fim de semana”, cheira “um pózim (sic)”. O fato gritante é que a maioria esmagadora dos jovens da periferia recorre às drogas químicas, como o crack e a cocaína, pela facilidade de acesso que encontram.

Rafael conta que a mãe, dona Aparecida, sabe da atividade dele, mas não o recrimina, pois ele tem a ajudado nas despesas domésticas, apesar de não morar mais com ela. Hoje, tem seu próprio barraco - um vão de poucos metros quadrados -, que divide com suas “namoradas”. Fenômeno comum a essas comunidades é o poder de sedução que os traficantes exercem nas garotas. Para elas, namorar um traficante é sinônimo de poder, de status dentro da comunidade. Semelhante encantamento ocorre com as crianças, que vêem na figura do traficante um exemplo a ser espelhado, tendo em vista que aqueles estão sempre com roupas novas, tênis de marca, relógios caros etc. Essa idolatria que se deposita sobre eles é também um dos motivos que os fazem continuar na atividade ilícita, pois, após conseguir esse prestígio, é muito difícil se desvincular dele. “As cumades18 só faltam pular em cima de mim”, gaba-se Rafael, abrindo um sorriso sarcástico e com um ar pouco modesto.

Entretanto, antes de ser um traficante de drogas, Rafael é um jovem de 21 anos e, como qualquer outro, tem seus gostos, suas vontades e seus amigos, com quem gosta de “jogar futebol e tomar umas gelas19”. Torce para o Fortaleza. Não vai aos jogos do seu time porque a atividade não o permite. “Os jogos são sempre domingo ou quarta, e aí são dias bons aqui pra mim”, confessa.

Sorridente, simpático e brincalhão, o jovem é o contrário do estereótipo do traficante, aquele de fisionomia carrancuda, autoritário, violento e prepotente. A atividade que exerce ainda não o embruteceu tampouco o fez perder o espírito de garoto. Durante a entrevista, fez várias brincadeiras com quem passava pelo local, sendo sempre correspondido, em tom também jocoso, pelos alvos das piadas.

As estatísticas deterministas provam que comumente a vida no tráfico aponta para dois caminhos: a morte ou a prisão. Rafael parece não pensar muito nisso; vai levando a vida como um garoto e, sem saber, como gente grande. Ele é um exemplo clássico de que muitos dos que exercem a atividade ilegal do tráfico não a fazem por escolha, como se fosse uma opção entre ser médico, jornalista ou traficante, mas por uma equação muito simples: o meio em que você nasce aliado à falta de oportunidades de conhecer outras realidades, senão aquela em que nasceu. Não que Rafael seja um exemplo de vida, não que se Rafael tivesse nascido com bem mais oportunidades teria um futuro promissor, mas Rafael nos ensina, mesmo sem querer, que, muitas vezes, o meio é responsável direto pelo fim. Rafael é apenas mais uma vítima do estado das coisas.

Por fim, me despeço do garoto dando-lhe um forte aperto de mão. “Acabou já?”, me indaga. Respondo que sim, sem falar, apenas balançando positivamente a cabeça. “Mas tava tão bom, me senti importante”, diz, rindo debochadamente. No caminho para casa, muitas divagações me passaram à cabeça. De fim, restou a lamentação. Triste sina, Rafael. Triste sina nesse tão desigual Brasil!

Glossário da periferia:

*1) Doze - gíria para designar alguém que trafica entorpecentes. Advém do Art.12 do Código Penal brasileiro que versa sobre tráfico de drogas;

*2) Olhar de rabo de olho – olhar desconfiado;

* 3) Tratar na limpeza – tratar bem, com educação, com respeito;

* 4) Arrepiar – traficar, vender bem, vender bastante;

*5) Canal – local (ou pessoa) onde os traficantes compram a droga em grande quantidade para revender;

*6) Pancada – ato de fumar/tragar o crack;

*7) Adianto – serviço, trabalho;

*8) Micharia – pouco dinheiro, quantia insuficiente, pequena quantidade;

*9) Playboy – jovens de classe média;

*10) Despachar – vender, negociar;

*11) Pedra – crack, tem essa gíria porque é vendida em pedrinhas envoltas em sacos plásticos;

*12) Bruxos – viciados crônicos, geralmente os mais impulsivos pela droga;

*13) Mancada – vacilo, erro;

*14) Camaradas – amigos, parceiros;

*15) Comer o troco – subornar;

*16) Homem – policial;

*17) A casa cair – Ter seu negócio fechado e/ou ir para a prisão;

*18) Cumade – mulher, garota;

*19) Gela – cerveja

* Texto feito para a revista Cores, na disciplina de Jornal Laboratório,  da Universidade Federal do Ceará (UFC/Junho de 2009)

**Artur Pires acredita que a grande diferença entre ele e Rafael é que ele,  Artur, teve muito mais oportunidades na vida

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O fantasma perturbador do crack*

O consumo de crack prolifera Brasil afora (Foto: autor desconhecido)

**Por Artur Pires

Quando, aos 28 anos de idade, após muito pensar sobre a atitude que iria tomar, Ricardo (nome fictício para as iniciais A.O.A.) tragou sua primeira pedra de crack, jamais passou pela sua cabeça que, hoje, aos 43 anos, ainda estaria lutando para fugir de um fantasma que o assombra desde aquele fatídico dia: a dependência ao crack. A grande maioria dos adictos ao crack viciou-se na primeira vez que experimentou. O seu altíssimo poder viciante é o que mais tem disseminado essa droga pelas periferias Brasil afora, em que pese, nos últimos anos, ela ter avançado sem pedir licença também na classe média.

Ricardo teve seu primeiro contato com as drogas ainda moleque. Aos nove anos, por incentivo de um conhecido mais velho, engoliu goela abaixo o psicotrópico Artane, comumente chamado de “aranha”. Gostou da sensação e passou a automedicar-se com o remédio tarja preta quase que diariamente. Aos 14, a primeira baforada num cigarro de maconha. “Até aí, era tudo legal”, lembra, com ar de saudade nos olhos.

Decidiu buscar outras sensações. Com 18 anos casou-se. Logo em seguida, veio a cocaína. Esta apresentou-se sedutora para Ricardo, que, com o passar dos anos,  não mais sentindo prazer ao inalá-la, passou, então, a injetá-la diretamente na veia, com a ajuda de seringas descartáveis. “Parecia que você tava nas nuvens”, diz, com uma expressão perdida no olhar, digna de quem mais uma vez vislumbrou no seu imaginário aquela cena de anos atrás.

Foram dez anos levando uma vida de casado aparentemente normal. Trabalhou como jornaleiro, operador de máquina de costura, com serviços gerais e até em padaria. Sempre honrando com suas obrigações de bom marido e pai de dois garotos, hoje com 18 e 6 anos, respectivamente. Ricardo era o que podemos chamar de usuário social, aquele que consome drogas – lícitas e ilícitas -, mas, no entanto, consegue ter o controle e o equilíbrio sobre as mesmas.  Até aquele fatídico dia em que deu sua primeira “pancada na pedra”.

De lá para cá, a vida social e familiar de Ricardo foi, gradativamente, se esvaindo junto com a pedra que era queimada na lata, virando fumaça. Teve que sair de casa, perdeu a mulher – e juntamente os filhos, que ficaram com a mãe. “Quando o caba tá fumando isso, perde a noção. Não se lembra de casa, da mulher, de nada”, assevera. O crack destrói e suplanta qualquer aspecto de caráter ético, moral ou humano que seu usuário possa ter. De pai de família e marido exemplar a assaltante. Após não ter mais o que tirar de casa, saía à rua à procura de “bobeiras”. Morador do Panamericano, zona oeste de Fortaleza, atravessava toda a cidade para praticar os delitos e não despertar a desconfiança da família tampouco dos vizinhos. “Roubava pelas Aldeota. Quem eu achasse que dava dinheiro, eu escorava”, diz, não demonstrando, à primeira vista, arrependimento.

Mais de dez anos de uso do crack arrasaram o aspecto físico de Ricardo. A pele negra e áspera mostra-se já castigada e com marcas visíveis do uso prolongado. Os dentes – na verdade, os poucos que ainda possui -, estão todos amarelados e carcomidos. Mas, bravamente, os cabelos ainda não se entregaram às agruras da dependência e do tempo. Estão todos lá, impávidos, ainda bastante pretos e com muito brilho. Pouquíssimos e perdidos cabelos brancos anunciam as mais de quatro décadas vividas. Uma destas sob o fantasma da dependência do crack.

Contudo, bem mais grave do que a degradação da fisionomia de Ricardo, as sequelas sociais, morais e psicológicas apresentam-se ainda com maior nitidez e estão mais impregnadas em sua história de vida. É difícil desassociar-se delas.  Mas é possível repará-las. Há dois anos, frequenta um dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Fortaleza. Nesses dois anos, conta que consumiu o crack “umas seis ou sete vezes”. Isso porque, diferentemente das clínicas de internamento, estes centros de ajuda trabalham com a política de redução de danos, que admite que o paciente possa vir a ter uma recaída, contudo, precisa estar preparado para assumir seu erro, encará-lo e seguir em frente – e, claro, não procurar repeti-lo. 

É bem provável que Ricardo vá continuar ainda por muitos anos pelejando contra esse espectro da dependência que o ronda desde aquele já mencionado fatídico dia. Exemplos como o de Ricardo estão aos montes espalhados por todo o Brasil. Homens e mulheres que perderam família, pais, filhos, casa, tudo. Entregam-se de corpo e alma a um desconhecido que chega silencioso, sedutor e... mortal: o fantasma da  dependência.

A história de Ricardo ilustra um problema vivido por milhares, quiçá milhões de brasileiros. A epidemia do crack nas grandes capitais e que está se interiorizando já é - sim! - caso de saúde pública e de um olhar mais atencioso por parte do poder público. As iniciativas públicas que até agora se debruçaram sobre a problemática dessa droga ainda se mostram muito incipientes e de tênue eficiência.  É preciso ação. Ou então perderemos pais, mães, filhos e filhas como Ricardo para esse vilão fantasmagórico – porém muito real, concreto e destruidor.

As clínicas e os CAPS

Entre os tipos de tratamentos que o adicto pode se submeter estão aqueles de caráter de internamento e os de viés ambulatorial.

Nas comunidades terapêuticas e clínicas particulares, o paciente é afastado do convívio social com pessoas não-adictas e passa a conviver apenas com aqueles que têm problemas semelhantes ao dele. Os tratamentos duram, em média, um ano. A abstinência total à droga é uma característica marcante - e salientada - nesses locais. Depois de passados os doze meses, o adicto está “liberado” novamente a um inteiro convívio com a sociedade. Na maior parte dos casos, estes centros são administrados por instituições religiosas, o que acarreta também uma imersão profunda e direcionada na religião que convier ao local, durante o período de internamento.

Nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), se trabalha com uma lógica multidisciplinar. Atividades de grupo e de lazer se misturam a consultas particulares com psicólogos, assistentes sociais e até psiquiatras.  O lado humano do indivíduo deve ser considerado, de acordo com o psicólogo Valton Júnior, que atende em um dos CAPS da cidade. Segundo Valton, a política de redução de danos, que não trabalha com a total abstinência, “diminui a culpa, a ansiedade e ajuda na recuperação”.  O adicto deve decidir sobre a completa abstinência ou não. “Não posso exigir do paciente que ele, de uma hora para outra, se torne abstinente”, explica Valton.  O psicólogo também acredita que “a questão da redução de danos é emblemática porque reduz, principalmente, o preconceito” em relação aos usuários do crack. 

*Texto originalmente publicado na revista Crack x Vida, de maio de 2010.  

** Artur Pires é jornalista e entende alguma coisa sobre o assunto

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

*Polícia, violência e corrupção: um caso (policial) de amor

Polícia, mídia e capitalismo: uma combinação nociva! (Charge: Carlos Latuff, no Vermelho)

**Por Artur Pires

Na última semana, a greve dos policiais militares cearenses - e principalmente o “Dia em que Fortaleza parou” - foi aqui abordada. Propositadamente, excetuando-se a conclusão do artigo, absolutamente nenhum comentário foi tecido a respeito da coerção, da corrupção e da violência policial, bem como do papel fundamental que essa instituição exerce como mantenedora do status quo. Este, pensei, era assunto para muitas outras linhas. 

Pois bem, trago o assunto à tona agora, instigado por mais um caso de agressão policial truculenta e gratuita. Dessa vez, filmado e amplamente divulgado nas redes sociais e pela internet afora: nas imagens (veja aqui), o sargento da PM, André Luiz Ferreira, agride covardemente o estudante da USP, Nicolas Menezes Barreto, durante a desocupação de um espaço que estava sendo utilizado pelo DCE daquela Universidade. Em um momento da agressão, o policial chega a sacar a arma da cintura para ameaçar o estudante. Além do modo inexplicável e violento como se dá a abordagem, o racismo do policial se configura claro na medida em que, no instante da ação, há diversos estudantes tentando dialogar com o “todo-poderoso” PM sobre o porquê da necessidade de retirá-los dali, mas ele escolhe para bode expiatório de sua truculência inveterada justamente o único negro no local.

Vale lembrar que, há pouco mais de dois meses, estudantes da USP ocuparam o prédio da reitoria para protestar contra a presença repressiva e autoritária da Polícia Militar nos campi da Universidade, entre outras reivindicações. O resultado todos sabem. Foram violentamente retirados do local por uma tropa de guerra da PM, após determinação da Justiça – poder constituído no qual a grande maioria dos seus componentes com poder de decisão (juízes, desembargadores e ministros do STJ e do STF) não pode nem ouvir falar em greves de trabalhadores e manifestações estudantis que se apressa a decretar atos dessa natureza como ilegais -, cumprida obedientemente à risca pelo governador tucano paulista Geraldo Alckmin e por seu fantoche na USP, o reitor João Grandino Rodas.

Abrindo aqui um parêntese, à época da ocupação da reitoria pelos alunos, a mídia burguesa - capitaneada pela rede Globo, pela revista Veja e pelos jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo - e a sociedade civil conservadora, sempre de plantão, prontíssima para defender os “valores da família e dos bons costumes”, alcunharam os estudantes de “baderneiros que só queriam fumar maconha no campus”, enfatizando que a PM lá era importante porque “manteria a ordem e a lei”.

A mesma mídia empresarial que defendeu a repressão policial na USP canta loas e espetaculariza a invasão e ocupação, pela PM, com ajuda das Forças Armadas, de comunidades no Rio de Janeiro: as famigeradas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O que não é retratado por esta mesma imprensa é que há uma quantidade absurda de casos de moradores que estão tendo seu direito de ir e vir cerceado pelos policiais - e militares do Exército, em alguns locais -, além de serem comuns denúncias de agressão e violência gratuita (veja aqui). Ademais, ainda surge agora a recente campanha de “higienização” que a PM paulista promove no centro de São Paulo, na cracolândia, onde expulsa à revelia os adictos daquela região da cidade, e, ao mesmo tempo, se omite a auxiliá-los psicossocialmente. Fecha parêntese.

Passados pouco mais de dois meses do episódio da ocupação da reitoria da USP, o que se percebe, principalmente após a divulgação das recentes imagens que correm as redes sociais, é que os estudantes desde sempre estavam cobertos de razão: a Polícia não tem nenhum preparo para lidar com o movimento estudantil e com qualquer outro movimento social e sindical. Age com a mesma coerção e violência que se acostumou historicamente a tratar aqueles que cruzam seu caminho – claro, desde que estes que cruzem o seu caminho não sejam ricos e poderosos.

Como dito nas primeiras linhas desse texto, a instituição Polícia existe para manter o estado das coisas, deixar tudo do jeitinho que está: uma minoria rica em detrimento de uma maioria miserável; uns morando em mansões, outros em casas de taipa e papelão; uns com um número infindável de oportunidades e escolhas à sua frente, outros em que as únicas oportunidades que lhes aparecem é se conformar com o seu destino de miséria ou partir para o tudo ou nada através de uma saída que se mostra de braços abertos a recebê-los: o crime... que não é o creme!

Funciona dessa maneira o modus operandi policial: protege-se a elite, que os classifica como defensores da lei e da ordem, e criminaliza-se a pobreza e a raça negra. Se for pobre e preto, meu deus, é um criminoso em potencial. Mas aí, quando a Senzala, não mais aguentando ser mantida por tantos séculos à margem dos processos sociais, políticos, econômicos e educacionais do País, parte para o confronto – que não é nada mais do que consequência direta e anunciada de um sistema que exclui e desiguala por natureza -, quem está lá para defender a Casa Grande? Logicamente, a Polícia, que presta proteção fiel aos “sinhôzinhos” – que, ainda assim, se encastelam em suas casas grandes rodeadas de muros altos, cercas elétricas… e, por via das dúvidas,  uma Ponto 40, engatilhada, guardada em cima do guarda-roupas, pronta para ser descarregada.

À parte essa simpatia toda para com os donos do poder e o olhar vulgar e atravessado aos herdeiros da Senzala, grande parte dos policiais ainda se empenha, disciplinados que são, em doutorar-se na “arte” de abarrotar os bolsos com extorsões e práticas de corrupção de toda ordem. “Comer o troco”, gíria para pegar dinheiro de extorsão, é linguajar comum entre os “puliça”.

Diante de todo o exposto acima, o mais preocupante é constatar que, apesar de todo o papel coercitivo e violento que a Polícia representa para a sociedade, esta, de tão anômala, não é sequer capaz de andar com as próprias pernas sem aquela seguradinha no ombro acolchoado do militar – vide o recente caso de um dia sem Polícia nas ruas de Fortaleza. O resultado desse condicionamento social é trágico: a anomalia da nossa sociedade, mergulhada num sistema desigual e alienador, que privilegia o dinheiro e, portanto, serve aos donos desse capital, casa perfeitamente com a função “social” de coerção e repressão que a Polícia desempenha. É isso o que vivemos! É isso o que queremos?

* Artigo publicado no Portal Vermelho
**Artur Pires é jornalista e palpiteiro de plantão

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O dia em que Fortaleza parou

Viaturas ficaram paradas em frente à sede da 6ª Companhia do 5º Batalhão da PM (Foto: O Povo)

Por Artur Pires

De antemão, devo admitir que o título do artigo é um plágio descarado de uma música do grande Raul Seixas chamada “O Dia em que a Terra Parou”. Entre outras estrofes, Raulzito canta que “o comandante não saiu para o quartel, pois sabia que o soldado também não tava lá”. Seriam, então, estas frases um vaticínio preciso do roqueiro? Certamente não, mas que é uma grande ironia do destino, isso é!

O certo mesmo é que nos meus quase 27 anos de vida, 18 deles vividos nesta capital alencarina, não havia ainda presenciado, in loco, um movimento de trabalhadores que influenciasse com tamanha contundência e precisão o cotidiano de uma cidade – e de um Estado também, se considerarmos que os desdobramentos do movimento paredista não se restringiram a Fortaleza - como na última terça-feira, 3 de janeiro, do incipiente 2012. E olhe que já vivenciei greves e mais greves na educação, no transporte público, na saúde etc., mas nenhuma dessas conseguiu a pujança e a onipotência da recente greve dos policiais militares.

Ruas vazias, pessoas trancafiadas em suas casas, órgãos públicos encerrando o expediente mais cedo, comércio de portas cerradas – constatei o Centro da cidade, pois nele trabalho, tal qual um cenário de filme de faroeste hollywoodiano, tamanha sua escassez de pessoas e de lojas abertas. As poucas almas que avistei aparentavam um olhar assustado e trépido, olhando a todo momento e desconfiadamente à sua volta, como que numa sensação de perigo iminente.  

Àquele momento, no começo da tarde, pipocavam nas redes sociais notícias de roubos, assaltos, arrastões e toda uma gama de acontecimentos que os programas policialescos adoram. A onda de boataria que se disseminou rapidamente pela mídia, nas redes sociais e de boca em boca apavorou o fortalezense. A cidade estava em pânico – e algo precisava ser feito.

E eis justamente aí o grande erro de Cid. O governador, líder político máximo do Estado, não fez jus à relevância do cargo que ocupa e, como um “Mister M” cearense, simplesmente se escondeu atrás de secretários e assessores que também em nada contribuíram para acalmar a população. O que o governador deveria ter feito, ao invés de brincar de esconde-esconde num momento tão crítico, era ir à tevê, ao rádio e aos jornais instruir a sociedade para que não se apavorasse, uma vez que o Exército e a Força Nacional de Segurança estavam nas ruas da cidade, cumprindo o papel dos policiais em greve. Cid se apequenou no momento em que não podia e essa atitude pode lhe custar caro no xadrez da política cearense. Que  lhe digam as eleições municipais que se avizinham.

Com o passar do dia, o volume de notícias veiculadas pela mídia e a efervescência do assunto nas redes sociais contribuíram para deixar o governador numa sinuca de bico: não tinha outra opção a não ser engolir goela abaixo o que exigiam os policiais, sob pena de ver a situação degringolar para uma tragédia urbana, o que poderia ser determinante para a morte política de Cid. Diante de um quadro que se pintava cada vez mais caótico e perigoso, os policiais militares cearenses impuseram a mais dura derrota política de Cid Gomes em seus cinco anos de governo. O rei, além de nu, estava de joelhos perante os grevistas.

Com o fim da greve anunciado nas primeiras horas da madrugada de quarta-feira, 4 de janeiro, a máxima que Cid e seus secretários fizeram uso desde que assumiram o poder de que “não negociamos com servidores em greve” caiu por terra. A Polícia Militar do Ceará saiu vitoriosa nessa queda-de-braço; conseguiu um aumento de mais de 50% em seus vencimentos, anistia total e irrestrita para os partícipes do movimento, além da redução da jornada de trabalho de 48 para 40 horas semanais.

Ainda conseguiram o compromisso do Governo do Estado da criação, no prazo de um mês, de uma comissão paritária entre os representantes do governo estadual e das quatro associações dos policiais militares e bombeiros cearenses para formular, em até três meses, novas regras sobre a tabela salarial, discussão de horas-extras, implantação de novo modelo para promoção, e reforma no Código de Ética e Disciplina da PM, que ajudaria no combate a práticas de assédio moral, muito comuns na hierarquia militar.

Mesmo inconstitucional, o movimento dos policiais militares do Ceará reacendeu a chama entre aqueles que acreditam que os trabalhadores, quando unidos e organizados, conseguem arrancar a rodo do patronato vitórias e conquistas. Influenciados por esse sopro de esperança, no apagar  das luzes do movimento paredista dos PMs, os policiais civis decretaram greve geral, com adesão imediata da categoria. Prometeram não voltar ao trabalho enquanto não tiverem suas reivindicações atendidas integralmente. Mais uma batata quente assando nas mãos do acuado Cid. Desculpem o clichê, mas cabe aqui o pertinente aforismo: a massa trabalhadora, quando unida, é invencível!

Por oportuno – e também para não deixar passar em branco um episódio lamentável envolvendo policiais militares – é importante ressaltar que seria de grande valia que os PMs cearenses, que agora vivenciaram, na prática, a experiência rica e marcante da luta de classes, se mostrassem a partir de agora solidários às lutas de outros servidores estaduais. Fatos como os presenciados em setembro de 2011 na Assembleia Legislativa, em que policiais truculentos atacaram covardemente professores da rede pública estadual que lutavam por melhorias trabalhistas não podem ser mais tolerados sob nenhuma hipótese, principalmente depois do ocorrido no 3 de janeiro, o dia em que Fortaleza parou!