(Charge: Latuff)
Artur
Pires
Imagine aí a situação: você é
negro e pobre, nasceu e cresceu numa favela. Em toda sua vida, dentre as opções
de lazer, ir ao shopping nunca foi
sequer cogitado. Não fazia parte de seu universo. Mas aí alguns amigos começam
a ir, gostam da idéia e te convidam para um rolé por lá também. Você decide
experimentar. E então sai de casa com amigos rumo ao shopping. Combinam de passear por lá, mirar as vitrinas, comer algo
nas feéricas praças de alimentação desses recantos, ir ao cinema ou consumir o
supérfluo – o tipo de consumo que ocorre nesses lugares. Você, enfim, está lá. Eis
que, de repente, policiais militares (PMs fazendo rondas em shoppings já é, por si só, revelador de
muita coisa – Pelo fim da PM, pela
imediata desmilitarização da Polícia!) e seguranças dirigem-se a você e
seus amigos e dizem grosseiramente que não podem ficar ali. Você se recusa a
sair. E aí vem o pior: te expulsam a cassetadas, empurrões, tapas e
xingamentos.
Essa cena não é imaginária
como parece ser. Ela é real, concreta. Mas aí o leitor dá de ombros e diz que
isso certamente aconteceu nos anos 50, no sul racista dos Estados Unidos – quem
sabe no Alabama ou no Mississipi – ou talvez na África do Sul do apartheid. Mas não! A cena descrita
aconteceu em São Paulo, Brasil, 2014, semana passada. E ocorreu também ano
passado no Rio de Janeiro (RJ), em Vitória (ES), em Fortaleza (CE) – quem não
lembra de jovens negros e pobres sendo expulsos na inauguração de um shopping na Parangaba? Infelizmente, esse
fato enojante, de embrulhar o estômago, deverá ocorrer outras vezes, em outras
cidades, e nas mesmas cidades novamente. Sabe por quê? Porque, para a sociedade
das aparências, a favela não é bem-vinda no templo do consumo burguês. À
favela, cabe ir ao shopping
tão-somente para ser explorada atrás dos balcões do McDonald´s ou para limpar
os banheiros.
Dentro da lógica consumista
dessa sociedade, é claro que ela quer, sim!, que os pobres consumam, comprem,
ostentem, mas quer assegurar igualmente que esse neoconsumismo da periferia não
invada seus templos sagrados. “Como assim dividir espaço nos corredores
iluminados dos shoppings com
‘favelados’? Que estes vão fazer suas compras no centro, no beco da poeira, que
lá é o lugar deles! Hunf”, pensa nossa elite, empinando ainda mais o nariz. A
sociedade brasileira é claramente segregada. Contudo, enquanto a periferia
esteve cerceada, limitada às suas fronteiras suburbanas e aos locais
“apropriados” para ela, estava tudo bem. Quando ela invade, sem pedir licença,
os domínios territoriais exclusivos dos ricos, aí o mito do paraíso racial e de
classe brasileiro vai para o brejo.
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(Charge:
Alpino)
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Para agravar esse quadro
pintado com tintas carregadas de opressão, exclusão e marginalização atávicas,
a ação da PM em São Paulo foi endossada pela Justiça (peraí, justiça?). Ou
seja, a Justiça (justiça?) assinou o atestado de comprovação do apartheid brasileiro. Há locais em que pretos e pobres não podem
andar – é isso o que ela diz com essa decisão absurda! Essa mesma Justiça que
abarrota negros e pobres – muitas vezes réus primários, ladrões de varal ou vapores
do tráfico de drogas nas favelas - como sardinhas em lata no sistema prisional,
ao tempo em que põe vendas nos olhos e é condescendente com os criminosos do
colarinho branco – esses de paletó e gravata, que desviam e superfaturam
milhões em obras públicas, que removem violentamente pessoas de suas casas em
nome de uma organização mafiosa como a FIFA, que compram votos no Congresso
Nacional e nas demais casas legislativas Brasil afora para se perpetuarem no
poder, que fazem conchavos políticos por debaixo dos panos para engordarem
ainda mais suas contas bancárias em paraísos fiscais…
Não percamos de vista que o
Poder Judiciário é também um dos apêndices do segregacionismo brasileiro. Via
de regra, age para manter o status quo,
amparando e sendo generoso com a elite tupiniquim e, por outro lado, lançando
sua mão punitiva contra a população dos guetos, sempre atendendo aos ditames do
capital, porque, como disse Bourdieu, n´O
Poder Simbólico, na atual configuração do sistema político mundial, o
Judiciário, o Legislativo e o Executivo estarão sempre a postos para obedecer ao
senhor dinheiro. O sistema político está carcomido. O capital é quem canta o
funk: “Tá dominado, tá tudo dominado”!
O alardeado Estado Democrático de Direito é uma farsa medonha, uma falácia
absurda que nos é empurrada goela abaixo diariamente e teatralizada a cada dois
anos, nas eleições.
Voltando à questão central
do texto, a polêmica dos rolezinhos tem a face positiva de trazer à superfície,
de maneira incontestável, a densa segregação de classe e de raça que há no
Brasil. Põe definitivamente uma pá de terra sobre o mito do paraíso racial e de
classe brasileiro. Não há integração entre as classes sociais no Brasil. O (a)
morador(a) da periferia só interage com o burguês quando vai recolher o lixo na
casa deste, ou quando dá um “bom dia” da portaria do prédio onde trabalha, ou
quando é empregada doméstica numa mansão, ou quando – consequência direta dessa
desigualdade - aponta uma quadrada para a cabeça daquele!
"Se eu fosse aquele
cara que se humilha no sinal
Por menos de um real
Minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele
moleque de touca
Que engatilha e enfia o cano
dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa, você
e sua mina
Um, dois, nem me viu: já
sumi na neblina"
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(Charge:
Duke)
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Assim como na África do Sul
do apartheid ou nos estados racistas
estadunidenses da primeira metade do século XX, vivemos numa sociedade
apartada, profundamente segregada. A relevante diferença é que o
segregacionismo brasileiro é ainda mais eficaz, porque sorrateiramente transmite
a idéia de que não existe. E é justamente esse véu que acoberta sua feição
tenebrosa que o torna ainda mais eficiente e, consequentemente, mais nocivo. Entretanto,
com o transbordamento da sociedade do consumo avançando em direção às
comunidades periféricas, que antes não faziam parte dessa relação promíscua
entre dinheiro e consumismo, vai ser cada vez mais difícil mascarar a tão
marcante segregação social brasileira. “É
verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três
quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o
confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras,
mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles Deleuze, Post-Scriptum
sobre as Sociedades de Controle).
Oxalá que essa explosão
venha acompanhada de transformações profundas no estado das coisas e nos
costumes sociais, bem como traga em seu bojo fagulhas com alto poder de
combustão para a derrocada da onipresente estrutura econômica que a todo custo
tenta nos impedir de sonhar. Queima babilônia! Como diria Ednardo (Pavão Misterioso), “eles são muitos, mas não podem voar”.