Charge: Latuff |
Artur Pires
Santiago Andrade, o
cinegrafista da Bandeirantes atingido acidentalmente por um rojão lançado por
um manifestante no Rio de Janeiro, está morto. É extremamente doído que alguém
faleça durante uma manifestação. Lamentável! No entanto, essa não é o primeiro óbito
desde que irromperam passeatas Brasil afora, em junho de 2013. Segundo a
compilação de Eduardo Sterzi, morreram também “a gari Cleonice Vieira de
Moraes, em Belém (PA), vítima do gás lacrimogêneo lançado pela polícia militar;
13 mortos na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré (RJ) – neste caso, a
imprensa sequer se deu ao trabalho de informar todos os nomes; o estudante
Marcos Delefrate, de 18 anos, em Ribeirão Preto (SP), atropelado por um carro
que furou um bloqueio de manifestantes; Valdinete Rodrigues Pereira e Maria
Aparecida, atropeladas em protesto na BR-251, no distrito de Campos Lindos, em
Cristalina (GO); Douglas Henrique de Oliveira, de 21 anos, que caiu do viaduto
José Alencar, em Belo Horizonte (MG), por ter sido acuado pela polícia militar;
o marceneiro Igor Oliveira da Silva, de 16 anos, atropelado por um caminhão que
fugia de uma manifestação, numa ciclovia próxima à Rodovia Cônego Domênico
Rangoni, na altura de Guarujá (SP); Paulo Patrick, de 14 anos, atropelado por
um táxi durante manifestação em Teresina (PI); Fernando da Silva Cândido, ator,
por inalação de gás lançado pela polícia, no Rio de Janeiro; e, por fim, o
senhor que foi atropelado por um ônibus, ao tentar fugir da polícia, na mesma
manifestação em que o cinegrafista Santiago foi atingido – sobre esta outra
vítima, nenhuma linha na imprensa”.
Muitas mortes, né? Mas você
não ficou sabendo de (quase) nenhuma delas ou, quando muito, leu rapidamente
uma notinha de rodapé num desses jornalões comerciais ou viu um informe de 10 segundos
na televisão. Não se entrevistaram os pais, os cônjuges, os filhos, os amigos
desses outros mortos. Não se repetiram reiteradas vezes imagens dos disparos
policiais sobre os manifestantes, do lançamento de inúmeras bombas de gás
lacrimogêneo e spray de pimenta, que, como visto acima, mataram manifestantes.
Não vimos um editorial raivoso de William Bonner, no JN, contra a PM.
Pelo
que se percebe, está claro que há uma deliberada seleção midiática de quais
mortes devem render comoção nacional e quais devem ser varridas para debaixo do
tapete. Queda evidente que, quando a violência policial é a responsável pelas
mortes – o que já ocorreu!, há um acordo tácito midiático de mal informar o
fato, além de fazê-lo esquecer de um dia para o outro. Quando a morte veio por
um rojão lançado por um grupo black bloc (o que também é condenável, uma vez
que aqueles que estão ali trabalhando não devem jamais ser alvos dos ataques
dos manifestantes, mas sim as empresas que eles representam), aí a mídia usa de
todo o seu poder de espetacularizar a notícia para convencer o senso comum de
que, além de vândalos e baderneiros, os black blocs são, agora, assassinos. Aí
vem o William Bonner e o William Waack, com seus cinismos habituais, condenar a
ação violenta dos black blocs.
Charge: Latuff |
Ora, não é por demais
lembrar que diariamente – isso mesmo: diariamente! – policiais matam pessoas em
todo o Brasil: são gente pobre, moradores das favelas. De acordo com dados do
7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente, em média,
cinco pessoas são mortas por dia no Brasil pela polícia, que vê o povo pobre,
dos guetos, como um exército inimigo. Não é demais lembrar que há grupos de
extermínio da polícia atuando em diversos estados brasileiros. Não é demais
relembrar que o pedreiro Amarildo foi morto por policiais após ser levado para
depoimento num quartel da Unidade de Polícia “Pacificadora” (UPP) da Rocinha,
no Rio de Janeiro. E, sabemos, há diversos Amarildos “desaparecendo”
cotidianamente nas periferias brasileiras após abordagens policiais, os
chamados autos de resistência, que é um nome pomposo que a PM inventou para
designar quando ela mata alguém – isso sem falar nas cifras ocultas que não
entram nessa estatística.
Você já viu algum editorial
da mídia discutir todo esse abuso policial? Debater toda essa carnificina nas
periferias? Analisar a remoção violenta de milhares de famílias de suas casas
para construção de obras relativas à Copa? Levantar a questão dos inúmeros
atentados à liberdade e – vá lá – à Constituição que estão inseridos na Lei
Geral da Copa? Viu uma linha sequer sobre o cerceamento do nosso direito de ir
e vir nos dias de jogos da Copa? Não, você não viu! E você não verá! Você verá
sempre o argumento rasteiro de que a Copa trará avanços para o país (quer
discurso mais senso comum que esse?), a condenação dos manifestantes ativistas
que se utilizam da tática da ação direta, e, por fim, quando houver óbito, a
espetacularização da morte, desde que essa não tenha sido causada pela violência
policial e do Estado. Reitero: há, deliberadamente por parte da mídia
empresarial, a filtragem da morte que deve ser relevante, daquela que merece
apenas uma notinha de rodapé e da outra – essa mais comum – que nem merece ser
noticiada. Como se a vida do cinegrafista Santiago valesse mais do que a da
gari Cleonice!
É completamente absurdo que
a televisão e os jornalões impressos nos pautem a morte de quem devemos chorar.
Choremos todos, por todas essas mortes, pelas que já ocorreram e pelas que
virão. Nesse instante em que se lê estas linhas, a Polícia mata alguém na
favela; alguém da favela mata alguém da classe média; os “alguéns” da favela se
matam (de domingo, 9 de fevereiro, a terça, 11 de fevereiro, cinco jovens foram
assassinados no Tancredo Neves na disputa pelo controle do tráfico de drogas na
região); alguém da classe média dá uma de “justiceiro” e mata alguém da favela
ou o acorrenta a um poste. Vivemos uma guerra fratricida cotidiana. A sociedade
dominada pelo espetáculo é cada vez mais violenta, porque é cada vez mais
desigual, mais excludente. Quem mora nos grandes centros não tem como fugir
dessa barbárie, porque ela está impregnada no habitus dessas cidades, ela paira como poeira do tempo, sobre nosso tecido social. A violência, talvez, um dia também bata à sua porta,
à minha. Vivendo aqui, nessa guerra, a morte pode também me alcançar. Mas ela
jamais seria mais ou menos importante que a da Cleonice. Aliás, alguma morte
vale mais que outra?
Viva as Cleonices e os
Amarildos brasileiros!