(Ilustrações:
estênceis de Banksy)
Artur Pires
Se tem uma coisa que ocorre com certa frequência por
estas bandas da Cidade dos Funcionários é a famosa geral, ou o baculejo, cuja
forma abreviada é “baca”, que vem a ser, para os desavisados ou não iniciados no
convívio de rua, a revista policial. São incontáveis as vezes, ao longo desses
anos todos de vivência cidadeana, em que
tivemos que colocar as mãos na cabeça e fazer a famigerada cara de
inocente.
De tão corriqueira que é a cena, alguns desses momentos constrangedores
correram de boca em boca e hoje fazem parte do grosso caldo de estórias que
formam a cultura cidadeana.
Uma geral bem conhecida por aqui aconteceu há muito
tempo, no finalzim dos anos 90. A molecada descia pras bandas do terreno do Antônio
Caixeira pra soltar raia. Era uma febre! O Rato era um dos mais verminosos na
arte de empinar as pipas. Marcava presença sempre.
Vale aqui abrir um parêntese para falar um pouco do Rato,
esse personagem folclórico do bairro, que mora no Tancredo Neves, comunidade
situada na região limítrofe entre a Cidade dos Funcionários e o Jardim das
Oliveiras. O Rato é também chamado de Cará porque, por morar às margens da
Lagoa da Zeza, dizia que quando chovia no Tancredo e seu barraco alagava, os
peixes vinham pular à beira de sua porta. E tome cará a semana toda! Assim,
sempre que chovia, ele ficava em dúvida se achava ruim o temporal alagar sua
casa ou achava bom o fato de se empanturrar de peixe! Fecha parêntese!
Pois bem, voltando à cena, passado devidamente o cerol,
estavam todos soltando raias; o vento de julho, que sopra mais forte que o
habitual, ajudava a empiná-las com mais facilidade, ainda que uns e outros, vez
por outra, embolassem suas linhas chinesas, a novidade da época. O Rato era
craque na arte de laçar e arriar as raias alheias. A cada pipa arriada, era uma
tiração de onda danada.
- Ieeeeiiiiii, zombavam
uns dos outros!
Foi num desses momentos de diversão que a polícia chegou
e anunciou a geral. Como o Rato era o mais velho da turma (já passava dos 18,
enquanto a maioria tinha entre 14 e 16) e também o mais negro (sim, a PM é
racista!), foi justamente nele que os porc..., ops, os policiais encarnaram:
- Mora onde, tu?
- Moro no Tancredo, senhor. Mas meu irmão mora nessa rua
ali subindo, ó, disse ele, com as pernas trêmulas e as mãos à cabeça.
- Tão fazendo o que aqui?
- Tá vendo não? Tamo soltando raia!
Nesse instante, a audácia do Rato fez que com os outros
não se contivessem e, escorados à parede também com as mãos para cima, rissem
baixinho. O polícia se incomodou com aquela gracinha e aumentou o tom.
- Gaiatim, né, maxo (o macho que designa masculino é
grafado com “ch”, mas esse “maxo” aqui, típica expressão do cearensês, é com “x”
mesmo!), tu? disse o policial, já perdendo a pouca paciência costumeira.
- Só respondi o que o senhor perguntou, cidadão, disse
Rato.
- Pois cadê o teu documento? Bora, cadê?
- Cidadão, com todo o respeito, mas eu nunca ouvi falar
que pra soltar raia precisava ter documento não, ó!
Nessa hora, bastou a primeira risada tímida pra todos
caírem numa gargalhada geral. O polícia
ficou descontrolado e meteu o Rato no camburão. Horas mais tarde, o irmão dele,
Neneca, que morava ali próximo, foi tirá-lo do xilindró. Passado o
constrangimento, a estória ficou e, certamente, será passada de geração para
geração entre os moradores.
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Noutra vez, dia desses tomávamos um litrão na barraca da
Lôra, na praça, acompanhado de um churrasquim de gato e umas rodelas de limão,
quando uma viatura do Ronda, com três polícias, chega e anuncia a geral:
- Os homens tudim com as mãos pra cima!
Um dos amigos, que estava acompanhado da namorada, fez a
infeliz pergunta:
- Até eu, cidadão?
- E tu num é homem não, porra!
Mal o cana acabou de falar e o amigo se posicionou pra
levar o baca também. O que a polícia não esperava é que estivesse ali o Daniel,
um cara que nasceu com o tino pra comédia e vive inventando expressões e
palavras que depois se espalham pelo bairro – me arrisco a dizer que algumas
grassam por toda a cidade. O “n´tem quem diga” (que pode ser usado em qualquer
conversação, pra atestar, confirmar ou negar algo – faça aí você o teste!) e o
“já deixei duas muié por causa disso” (ao ser questionado sobre alguma coisa
que não quer responder) são as duas novidades que campeiam por estas bandas no
momento.
Daniel vive também dizendo que na casa dele, na qual vive
com a mulher, quem manda é ele: “Lá em casa quem manda sou eu. A mulher manda
eu lavar as roupas e o que eu faço? Lavo, mas num enxugo! Manda eu varrer a
casa? Eu varro, mas num apanho o lixo. Manda eu fazer o almoço? Eu faço, mas num
ponho a mesa”. E assim prossegue com seu
repertório de gaiatices...
Nesse dia da geral, o polícia encostou nele e, enquanto o
apalpava, iniciou o interrogatório:
- Tu deve alguma coisa, maxo?
- Sim, só cartão de crédito!
- Não tô falando
disso não. Quero saber é se teu nome é sujo?
- Sim, no SPC e Serasa.
- Rapaz, o que eu quero saber é se tu responde alguma
coisa?
- Só o que você perguntar!
- Pois eu tô perguntando é se tu deve alguma coisa na
Justiça, maxo? disse o polícia, já bufando pelas narinas.
- Ah, porque você não disse logo. Pra Justiça eu devo só
duas cópias de um documento que eu tirei no fórum e nunca paguei. E só num
paguei porque a moça não tinha troco pra 50!
- Maxo, tô vendo que tu é cheio de gracinha. Tu usa
droga?
- Se Derby e Ypióca entrarem nessas estatísticas...
- Não tô falando disso. Tô falando de droga mesmo!
- De vez em quando assisto o Faustão...
- É o quê, maxo?
- Pois é, n´tem quem diga!
- Maxo, vai, vai, vai, que tu tá é bêbo!
E assim, terminada a geral, todos voltamos às nossas
cadeiras e continuamos a prosa e a bebedeira. O litrão já ia pela canela da
garrafa, mas depois daquele geral bem sucedida (isso é, ninguém tinha rodado),
o que nos restava era pedir um outro litro pra comemorar.
- Ô Lora, traz mais um aí pra espantar o nervosismo!
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