sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O fantasma perturbador do crack*

O consumo de crack prolifera Brasil afora (Foto: autor desconhecido)

**Por Artur Pires

Quando, aos 28 anos de idade, após muito pensar sobre a atitude que iria tomar, Ricardo (nome fictício para as iniciais A.O.A.) tragou sua primeira pedra de crack, jamais passou pela sua cabeça que, hoje, aos 43 anos, ainda estaria lutando para fugir de um fantasma que o assombra desde aquele fatídico dia: a dependência ao crack. A grande maioria dos adictos ao crack viciou-se na primeira vez que experimentou. O seu altíssimo poder viciante é o que mais tem disseminado essa droga pelas periferias Brasil afora, em que pese, nos últimos anos, ela ter avançado sem pedir licença também na classe média.

Ricardo teve seu primeiro contato com as drogas ainda moleque. Aos nove anos, por incentivo de um conhecido mais velho, engoliu goela abaixo o psicotrópico Artane, comumente chamado de “aranha”. Gostou da sensação e passou a automedicar-se com o remédio tarja preta quase que diariamente. Aos 14, a primeira baforada num cigarro de maconha. “Até aí, era tudo legal”, lembra, com ar de saudade nos olhos.

Decidiu buscar outras sensações. Com 18 anos casou-se. Logo em seguida, veio a cocaína. Esta apresentou-se sedutora para Ricardo, que, com o passar dos anos,  não mais sentindo prazer ao inalá-la, passou, então, a injetá-la diretamente na veia, com a ajuda de seringas descartáveis. “Parecia que você tava nas nuvens”, diz, com uma expressão perdida no olhar, digna de quem mais uma vez vislumbrou no seu imaginário aquela cena de anos atrás.

Foram dez anos levando uma vida de casado aparentemente normal. Trabalhou como jornaleiro, operador de máquina de costura, com serviços gerais e até em padaria. Sempre honrando com suas obrigações de bom marido e pai de dois garotos, hoje com 18 e 6 anos, respectivamente. Ricardo era o que podemos chamar de usuário social, aquele que consome drogas – lícitas e ilícitas -, mas, no entanto, consegue ter o controle e o equilíbrio sobre as mesmas.  Até aquele fatídico dia em que deu sua primeira “pancada na pedra”.

De lá para cá, a vida social e familiar de Ricardo foi, gradativamente, se esvaindo junto com a pedra que era queimada na lata, virando fumaça. Teve que sair de casa, perdeu a mulher – e juntamente os filhos, que ficaram com a mãe. “Quando o caba tá fumando isso, perde a noção. Não se lembra de casa, da mulher, de nada”, assevera. O crack destrói e suplanta qualquer aspecto de caráter ético, moral ou humano que seu usuário possa ter. De pai de família e marido exemplar a assaltante. Após não ter mais o que tirar de casa, saía à rua à procura de “bobeiras”. Morador do Panamericano, zona oeste de Fortaleza, atravessava toda a cidade para praticar os delitos e não despertar a desconfiança da família tampouco dos vizinhos. “Roubava pelas Aldeota. Quem eu achasse que dava dinheiro, eu escorava”, diz, não demonstrando, à primeira vista, arrependimento.

Mais de dez anos de uso do crack arrasaram o aspecto físico de Ricardo. A pele negra e áspera mostra-se já castigada e com marcas visíveis do uso prolongado. Os dentes – na verdade, os poucos que ainda possui -, estão todos amarelados e carcomidos. Mas, bravamente, os cabelos ainda não se entregaram às agruras da dependência e do tempo. Estão todos lá, impávidos, ainda bastante pretos e com muito brilho. Pouquíssimos e perdidos cabelos brancos anunciam as mais de quatro décadas vividas. Uma destas sob o fantasma da dependência do crack.

Contudo, bem mais grave do que a degradação da fisionomia de Ricardo, as sequelas sociais, morais e psicológicas apresentam-se ainda com maior nitidez e estão mais impregnadas em sua história de vida. É difícil desassociar-se delas.  Mas é possível repará-las. Há dois anos, frequenta um dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Fortaleza. Nesses dois anos, conta que consumiu o crack “umas seis ou sete vezes”. Isso porque, diferentemente das clínicas de internamento, estes centros de ajuda trabalham com a política de redução de danos, que admite que o paciente possa vir a ter uma recaída, contudo, precisa estar preparado para assumir seu erro, encará-lo e seguir em frente – e, claro, não procurar repeti-lo. 

É bem provável que Ricardo vá continuar ainda por muitos anos pelejando contra esse espectro da dependência que o ronda desde aquele já mencionado fatídico dia. Exemplos como o de Ricardo estão aos montes espalhados por todo o Brasil. Homens e mulheres que perderam família, pais, filhos, casa, tudo. Entregam-se de corpo e alma a um desconhecido que chega silencioso, sedutor e... mortal: o fantasma da  dependência.

A história de Ricardo ilustra um problema vivido por milhares, quiçá milhões de brasileiros. A epidemia do crack nas grandes capitais e que está se interiorizando já é - sim! - caso de saúde pública e de um olhar mais atencioso por parte do poder público. As iniciativas públicas que até agora se debruçaram sobre a problemática dessa droga ainda se mostram muito incipientes e de tênue eficiência.  É preciso ação. Ou então perderemos pais, mães, filhos e filhas como Ricardo para esse vilão fantasmagórico – porém muito real, concreto e destruidor.

As clínicas e os CAPS

Entre os tipos de tratamentos que o adicto pode se submeter estão aqueles de caráter de internamento e os de viés ambulatorial.

Nas comunidades terapêuticas e clínicas particulares, o paciente é afastado do convívio social com pessoas não-adictas e passa a conviver apenas com aqueles que têm problemas semelhantes ao dele. Os tratamentos duram, em média, um ano. A abstinência total à droga é uma característica marcante - e salientada - nesses locais. Depois de passados os doze meses, o adicto está “liberado” novamente a um inteiro convívio com a sociedade. Na maior parte dos casos, estes centros são administrados por instituições religiosas, o que acarreta também uma imersão profunda e direcionada na religião que convier ao local, durante o período de internamento.

Nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), se trabalha com uma lógica multidisciplinar. Atividades de grupo e de lazer se misturam a consultas particulares com psicólogos, assistentes sociais e até psiquiatras.  O lado humano do indivíduo deve ser considerado, de acordo com o psicólogo Valton Júnior, que atende em um dos CAPS da cidade. Segundo Valton, a política de redução de danos, que não trabalha com a total abstinência, “diminui a culpa, a ansiedade e ajuda na recuperação”.  O adicto deve decidir sobre a completa abstinência ou não. “Não posso exigir do paciente que ele, de uma hora para outra, se torne abstinente”, explica Valton.  O psicólogo também acredita que “a questão da redução de danos é emblemática porque reduz, principalmente, o preconceito” em relação aos usuários do crack. 

*Texto originalmente publicado na revista Crack x Vida, de maio de 2010.  

** Artur Pires é jornalista e entende alguma coisa sobre o assunto

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