Charge: Latuff |
Artur
Pires
Na última terça-feira à noite, após o racha na quadra –
que é de lei! -, trocávamos umas idéias na calçadinha do Vanor quando,
repentinamente, somos silenciados por dezenas de fogos de artifício que
irrompiam no céu lá pras bandas do Tancredo Neves, comunidade da zona sul de Fortaleza
com índice baixíssimo de desenvolvimento humano.
Foi uma saraivada de fogos! Não era jogo do Fortaleza nem
do Ceará, tampouco dos times da Vila e do Tancredo, que jogam aos domingos. Engolimos
a seco! Para muitos, seria apenas mais uma vez pessoas lançando fogos de
artifício ao ar. Para nós, que moramos ali próximo e convivemos há diversos
anos com aquele ato ritualístico, sabíamos que se tratava de alguma morte. Não
uma morte morrida, mas uma morte matada... um homicídio; a bem da verdade, um
acerto de contas do crime!
Ligamos de imediato para um amigo que mora por lá, para
saber se ouvira falar de alguma notícia trágica. A morte podia ter atingido com
sua foice imperdoável algum amigo, um conhecido, mais um. “Escutei aqui também,
mas parece que é lá pro Areal, num é aqui não”, disse pelo telefone o amigo
consultado. No outro dia, soubemos que de fato a morte tinha deixado seu rastro
de sangue e choro no Areal, comunidade situada às margens da BR-116, separada
do Tancredo Neves pelo rio Cocó.
Preto,
pobre, favela
Coroa
chorando, corpo coberto, sangue no chão, ao lado uma vela
Acerto
de contas, cheirou e não pagou
Os
cara chegaram e cobraram com tiro na cara
O
sofrimento fica pra coroa
Que
sempre rezava querendo ver seu filho numa boa
(MVBill – Traficando Informação – obs: perdeu muito no
conceito depois que foi ator da Malhação e jurado do Faustão)
O ritual de lançar fogos de artifício ao céu para
comemorar e demarcar a morte de um integrante de uma gangue rival está
incorporado ao modus vivendi dos
jovens dessas comunidades. Há todo um controle geográfico-territorial dos
espaços que podem – ou não! – ser ocupados pelos integrantes das facções. O
Tancredo Neves tem uma população de cerca de 30 mil pessoas. Segundo dados do
Habitar Brasil/BID, 10% dela analfabeta e 70% vivendo abaixo da linha da
pobreza. Nessas condições miseráveis, o tráfico se torna um caminho sedutor e
natural para grande parte dos jovens! Só no Tancredo, quatro “organizações” do
crime disputam o comércio de drogas e armas na comunidade: Coloral,
Cachoeirinha, Rua das Araras e Pólo. Quem atravessar o espaço alheio vai pra
vala! Isso sem falar das disputas pelo comando do mercado de drogas na região com
as comunidades vizinhas da Vila Cazumba, do Tasso e do Areal.
O movimento do crime tem suas leis próprias. Um enorme cabedal
de códigos tácitos de conduta e comportamento foi, ao longo dos anos, sendo
assimilado pelos “soldados” da atividade. Quem descumpre as regras vira
estatística. Como dito, o crime se insinua, seduz e, por fim, abocanha grande
parcela dos jovens das comunidades pobres brasileiras. Nessa guerra civil
fratricida e insana, quem morre sempre é o preto, pobre, favelado. Já perdi amigos, vi morrer conhecidos e
muitos desconhecidos. Estão se matando num etnocídio diário, que mancha
de sangue e lágrimas becos e vielas na periferia. Segundo dados da Secretaria
de Segurança Pública do Ceará, até a noite de 8 de dezembro, 286 adolescentes
menores de 18 anos foram assassinados na Grande Fortaleza, um aumento de 25% em
relação a 2012. Falando no ano passado, houve 1.628 assassinatos na capital
cearense, redundando numa média macabra de mais de quatro homicídios por dia. A média em 2013 já passou dos cinco homicídios/dia.
Números maiores do que o de países "oficialmente" em guerra. Observe-se que em Fortaleza mata-se, proporcionalmente, cinco vezes mais que em São Paulo. É
como diz, com muita propriedade, o Facção Central, em SP Auschwitz – Direto do Campo de Extermínio, as
favelas brasileiras são verdadeiros campos de extermínio, locais de carnificina
cotidiana.
Esse banho de sangue permanente é completamente ignorado
pela classe média e pela elite, que dão de ombros às mortes da perifeira e só
se preocupam com a violência quando ela lhe bate à porta, ou seja, sai da
favela e toma de assalto seus bens num condomínio de luxo! O extermínio da
juventude negra periférica é escanteado para debaixo do tapete. A violência na
favela foi admitida como natural pela sociedade. Por que um assassinato num
bairro nobre vale mais que a carnificina na favela? O espetáculo fez triunfar a
seleção das mortes que precisam ser lamentadas. As dos negros pobres da periferia
se transformam em espetacularização nos programas-lixo - e só! A de um classe-mediano
vira rapidamente motivo de comoção nacional e de editoriais hipócritas sobre
violência urbana na mídia convencional. Reitero: por que uma morte vale mais
que as muitas outras? Está tudo errado!
“É verdade que o capitalismo manteve como constante a
extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida,
numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a
dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gilles
Deleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades
de Controle).
Da
guerra interna, dentro da favela
Só
morre preto e branco pobre, que faz parte dela
O
sistema faz o povo lutar contra o povo
Mas
na verdade o nosso inimigo é outro
O
inimigo usa terno e gravata
Mas
ao contrário a gente aqui é que se mata
Fazendo
justamente o que o sistema quer, saindo para roubar
Para
botar um Nike no pé!
(MV
Bill – Traficando Informação)
Abrindo aqui um parêntese, o extermínio da juventude
negra poderia ser minorado com a legalização das drogas e o consequente desbaratamento
das facções do tráfico. É o comércio de drogas, ou melhor, a disputa pelo
controle desse mercado clandestino o principal responsável pelas mortes na
favela. Legalizar e regulamentar as drogas seria um profundo golpe na raiz de milhares
de homicídios no Brasil. A política proibicionista claramente fracassou,
promoveu um morticínio generalizado em diversos países do mundo (Brasil, México,
Colômbia, etc.) e aumentou o poder do tráfico internacional com a repressão, pois
quanto maior a repressão, mais cara a droga - e, consequentemente, maior o
lucro dos traficantes. A política de “guerra às drogas”, capitaneada pelos EUA
e mimetizada por diversas nações, entre estas o Brasil, tem a clara função de
controle social, tanto quando produz a carnificina na favela, bem como quando encarcera
moradores dessas comunidades. Enquanto os jovens se matam nos subúrbios pelo comando
do tráfico, os grandes barões da droga - aqueles que transportam quase meia
tonelada de cocaína por helicópteros - lavam o dinheiro em paraísos fiscais e sentam-se
à mesa do capitalismo financeiro para tratar com governantes sobre negócios.
Depois, para comemorar o sucesso das empreitadas público-privadas, brindam com uísque
doze anos e degustam foie gras.
Os
ricos fazem campanha contra as drogas
E
falam sobre o poder destrutivo delas.
Por
outro lado promovem e ganham muito dinheiro
Com
o álcool que é vendido na favela.
Enfim, é chegada a hora de repensar esse modelo por uma
alternativa que, ao invés da repressão violenta e de suas consequências nocivas,
permita o cultivo caseiro da maconha, promova espaços para o consumo e a compra
regulada da erva, como as cooperativas canábicas (comuns em alguns países europeus),
privilegie campanhas de prevenção e informação sobre todos os narcóticos (assim
como já faz com o álcool e o cigarro), trabalhe com a redução de danos –
oferecendo ajuda psicológica e de saúde gratuita aos usuários, ou seja, foque a
adicção como questão de saúde pública e não mais como caso de segurança, entre
outras medidas. Fecha parêntese.
Charge: Henfil |
A polícia, por sua vez, desempenha o seu papel
costumeiro. Lava as mãos como Pilatos e faz vista grossa ao morticínio da
favela em troca de gordas propinas que subornam dos traficantes. Noutras vezes,
é ela mesma a praticante do homicídio. A polícia brasileira é a que mais mata
no mundo. De acordo com dados do 7º anuário Brasileiro de Segurança Pública,
divulgado recentemente, em média, cinco pessoas são mortas por dia no Brasil
pela polícia, que vê o povo pobre, dos guetos, como um exército inimigo.
Se
diz que moleque de rua rouba,
O
governo, a polícia, no Brasil quem não rouba?
Ele
só não tem diploma pra roubar,
Ele
não se esconde atrás de uma farda suja.
É
tudo uma questão de reflexão irmão,
É
uma questão de pensar.
A
polícia sempre dá o mau exemplo,
Lava
a minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro.
Pra
dentro de cada canto da cidade,
Pra
cima dos quatro extremos da simplicidade.
Em 2012, quase 2.000 pessoas foram vitimadas em
“abordagens” policiais. Sabemos que quase todas essas mortes entraram para a
estatística de “autos de resistência”, que é quando a polícia assassina e quer
dizer isso de uma forma polida. Essa terminologia tacanha encobre graves
violações de direitos humanos e acoberta ações de grupos policiais de
extermínio. Não à toa o Conselho de Direitos Humanos da ONU já recomendou, por mais de uma vez, o fim da PM no Brasil. É
preciso que esse debate se avolume e ganhe vulto na sociedade e não se
restrinja tão-somente à academia. Desmilitarizar a polícia e repensar um novo
modelo de segurança pública é passo imprescindível para garantirmos a
democracia e a liberdade reais - não essas de “faz-de-conta” – bem como nos
livrarmos de vez dos fantasmas e do modus
operandi da ditadura dos milicos, que insistem em nos assombrar quase três
décadas após seu fim.
Enquanto essa carnificina ocorre cotidianamente, milhares
de outros moradores das favelas, que não escapam à ação controladora do Estado,
são entupidos em instituições penitenciárias, que funcionam como verdadeiras
universidades do crime. Vejam só que conveniente ao Estado: não dá suporte
tampouco garantia mínima de dignidade a estas pessoas durante toda a vida, mas
tem a mão rápida e seletiva para algemá-los e conduzi-los ao xilindró na
primeira subversão “à ordem e aos bons costumes”. Ou seja: o Estado quase nunca
chega aos guetos com sua função de garantir os direitos humanos básicos, mas
açoda-se para marcar presença quando é para levar a cabo as funções punitiva e
de controle social. É o Vigiar e Punir,
de Foucault, sendo levado às últimas e mais bárbaras consequências.
Assim, o Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 580 mil detentos ou 274 por 100 mil habitantes
e os mais altos índices de criminalidade do planeta. Percebe-se,
claramente, que algo está errado. E é o nosso modelo de segurança pública, inserido
numa lógica militar e também – é preciso sempre que se leve em conta – numa
engrenagem capitalista do espetáculo, que transforma as mortes da periferia em
espetacularização nos programas-lixo da tevê, que rendem audiência e, por isso,
rendem anúncios, que rendem dinheiro, etc., perfazendo um movimento cíclico que
se locupleta em várias outras ramificações, girando a roda-gigante do capital.
Não percamos de vista que o genocídio dos jovens negros
nas favelas, a criminalização da pobreza e da negritude, a política de guerra
às drogas e a superpopulação carcerária, composta esmagadoramente por moradores
da periferia, são a face mais nefasta do “espetáculo” brasileiro. Para a sociedade
do controle e do consumo, o dinheiro gerado pela construção do VLT, à base de
remoções violentas, é muito mais importante que as mortes cotidianas do
Tancredo, do Areal, da Vila Cazumba...
Mas, afinal, quem se importa com os mortos da favela?