*Artur Pires
O amigo que me contou o que
relatarei a seguir não é de inventar história. Depois de ouvi-la, acreditei que,
sim, as coisas ainda podem se aprumar, se ajeitar, quem sabe. Conta que a
história aconteceu domingo, no PV, no jogo do Leão contra o Santa Cruz, de
Recife. Foram ao clássico nordestino em cinco. Na caranga a caminho do estádio,
entre os tricolores, um black bloc – “com vandalismo, sempre” -, como gosta de
dizer, e um policial, do Choque. Amigos. Aparentemente diferentes, essencialmente
parecidos. Falavam da manifestação do dia anterior, 7 de setembro, quando houve
mais uma vez ataque violento aos manifestantes e diversas outras situações de
abuso policial. Os black blocs, por sua vez, na linha de frente, depredavam
lojas, bancos, carros, no coração da Aldeota, o bairro símbolo da burguesia
fortalezense.
- Ei meninão, te vi ontem descendo ali pela rua do
Dragão, já com a camisa reserva no ombro, disse o polícia.
- Foi mesmo mah? E tu tava aonde?, indagou o black bloc.
- Viu aquelas viaturas escoradas ali perto do Seminário
da Prainha?
- Hanhan…
- Então, tava ali e te vi descendo com outro bicho, já
instigado.
- Hahahahaha… Maxo, ontem a galera se garantiu. Destruímos
vários bancos, “lojazonas” de marca… Ooora cumpade, esses safados roubam direto
da gente mah, é só sugando… Tem que fazer alguma coisa pra eles se incomodarem,
verem que o negócio tá ruim pro lado deles, que o povo não aguenta mais essa
opressão, mah.
- Ééé… Esse bicho é doido! Hehehe! Mas tu viu lá que o
comandante só mandou atacar mesmo naquela hora ali da Santos Dumont com
Desembargador, né? Deixou vocês na limpeza por um tempão.
- E tu tava atirando mah?
- Não, não. Só com o escudo. Fiquei com a missão de fazer
a proteção.
-Ei maxo, e se tu tivesse com a missão de atirar, tu disparava?
- Ia fingir. Levantava a arma, fazia a posição de tiro,
mas só de “agá”.
- É mesmo é mah?, disse o black bloc, levantando mais à
testa uma das sobrancelhas e encolhendo a outra, numa atitude de descrença.
- Sério! Óia aí, esse bicho num acredita não.
- Se você tá dizendo, acredito mah, acredito!
- Ei, maxo, vamos guardar o
carango aonde? Aqui tem mais vaga não, cumpade. Lotado!, disse outro tricolor, interrompendo a conversa
e já doido para tomar uma gelada na barraquinha da esquina, comendo, para
acompanhar os goles, um churrasquim de gato.
Guardaram o carro próximo à
Barão do Rio Branco, a poucos quarteirões do PV. No caminho, diziam da
importância do Leão ganhar aqueles três pontos, uma vez que os resultados da
rodada tinham sido todos favoráveis. Depois de algumas cervas, entraram. Casa
cheia, nação tricolor fazendo uma festa bonita. O Fortaleza pressionou o
Santinha o primeiro tempo quase todo. Mas o gol não veio. Pior, Assisinho,
melhor jogador, ainda saiu machucado. No intervalo, chupando um marujinho cada
um, que é de lei, o black bloc e o polícia retomaram o diálogo sobre o dia
anterior:
- Pois é, maxo… E os
infiltrados, tem um bocado viu. O nêgo se liga!, disparou o revolucionário
black bloc.
- Tô ligado. É pra polícia
saber pra onde a galera tá indo, o que tão planejando. Tinha da PM, da Federal,
da Civil…
- Vixi, cumpade. Vários, né,
mah?
- Ó! Vários!
- Ei, maxo, nas horas lá do
pânico, quando vocês vêm pra cima mesmo, tu tem que dar o toque pro nêgo da
rota de fuga, mah. Pra num rodar, né, cara?, brincou sério o black bloc, com o
sorriso escorregando pro canto da boca.
- Hehehehe. Tô ligado. Esse
bicho…. É uma onda!, disparou o polícia.
- Tô falando é serio,
baitola!, enfatizou o revolucionário, abrindo mais os olhos e fazendo um grande
gesto de mãos.
- Pode crer, vai dar certo. A
gente conversa.
- Leva o celular na próxima,
maxo. Esquece não! Hehehe!
O polícia balançou a cabeça positivamente
e riu tímido. Àquele momento, pensou na contradição que é trabalhar naquela
corporação. Queria mesmo era estar do outro lado. Mas não. A vida é nua e crua.
Pede, amiúde, pragmatismo. Ele precisa se sustentar, pagar a prestação do carro
e a ração do cachorro, além de ajudar a mãe nas despesas domésticas. Precisa
daquele dinheiro, mesmo que ele venha manchado de violência e de militarismos dos
quais discorda. No entanto, o paradoxo o incomoda; tira-lhe, às vezes, até
mesmo o sono.
Recomeça o segundo tempo. O
Leão continua pressionando. Faz dois gols antes dos vinte minutos. A torcida
vibra feliz. O black bloc e o polícia se abraçam efusivamente. Tiram a camisa,
e sacodem-na para o alto, ao ritmo da torcida: Leãããoooo, nós gostamos de você,
nós gostamos de você, nós gostamos de você…
Ao fim da partida, com
vitória do Tricolor de Aço, comemoram comendo um feijão verde regado a
cervejas. O polícia não bebe cerveja, mas come que é uma beleza. Perto de chegarem
aos seus lares, no caminho, combinam o surfe semanal.
- Maxo, no Portão tem altas!
E se não tiver lá, tem no Titan ou no Vizinho. Né não, Paiacas?, diz o black
bloc, fazendo um gesto incisivo de queixo, apontando para um terceiro tricolor,
como que pedindo uma confirmação das “altas” ondas.
- Tem viu, menino. Altas! Vale
demais, mah. Máquina de ondas. É um crowd,
mas tem onda pra todo mundo. De rocha! E com uma formação irada!
- Pois, então, vamo nessa. A
gente se fala aí, disse o polícia, à beira de casa, apertando as mãos dos
tricolores e, em seguida, entrando no jardim e acarinhando o seu cachorro, que
o esperava ansioso e saltitante, balançando o rabo.
(Ilustração: reprodução de um grafite do inglês Banksy)
O sonho do polícia é sair da
polícia, para acabar de vez com as crises existenciais que o paradoxo da sua
condição lhe impõe. Caiu de paraquedas num vespeiro, e, para melhor passar,
teve de transigir às ordens das vespas. Mas não vê a hora de livrar-se definitivamente
das picadas. Quer morar numa casa tranquila, perto da praia, aonde possa ir
andando surfar, com espaço para cultivar seus pés de planta, brincar com os
cachorros e, quem sabe um dia, correr com os filhos. Como gosta muito de
crianças – tem sobrinhos e os quer um bem danado -, sonha com o dia em que não
verá mais nenhuma delas fazendo malabarismos no sinal para sobreviver ou
reclamando fome embaixo das marquises dos viadutos. Quer viver em paz, sem
precisar pegar em armas, pegando ondas. São geralmente essas coisas que se
confidencia quando põe a cabeça no travesseiro e conversa com seus botões,
antes de pegar no sono.
O sonho do black bloc,
anarquista, é lutar pelo fim do capitalismo, para que as pessoas possam viver verdadeiramente
livres do fetiche da aparência, verdadeiramente livres das opressões invisíveis,
mas que oprimem. Quer uma casa perto da praia, aonde possa surfar sempre, com
espaço para cultivar seu pomar, sua hortinha, seus pés de planta, inclusive sua
ganja. Quer viver em paz, com sabedoria e simplicidade, pegando ondas. “Em paz”
não quer dizer que não queira também lutar por uma nova sociedade, justa e
livre. Mastiga esses pensamentos soltos no
primeiro sono, aquele de leve, quando ficamos em cima do muro, entre a crueza do
consciente e as profundezas mais enigmáticas do inconsciente.
O black bloc e o polícia, no
frigir dos ovos, são aparentemente diferentes, mas essencialmente parecidos. Enxerindo-me
a fazer uma releitura de Sartre, diria que a essência precede a aparência.
* Artur Pires é amigo pra toda hora do black bloc e do polícia.
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