quinta-feira, 20 de junho de 2013

Os 80 mil nas ruas de Fortaleza: relatos de um cenário de guerra

(Charge: Clayton/ O Povo)

Artur Pires

Fortaleza, 19 de junho de 2013. Éramos doze. Saímos a pé da Cidade dos Funcionários, distante uns cinco quilômetros do Makro, na BR-116, ponto de concentração da manifestação “Mais Pão, Menos Circo”. Nas mochilas, vinagres, cartazes, tintas spray e cachaça. Fora delas, muita disposição e adrenalina correndo nas veias! No caminho, já íamos entoando nossos gritos de guerra, talvez já prevendo a verdadeira guerra que nos esperava: “Saúde, educação, sem corrupção”; “fora, Fifa!”; “vandalismo é a Copa”, entre outros.

Meia hora depois, chegamos ao local da concentração. Vimos, de início, milhares de pessoas ali. Foi de arrepiar. O calor era de rachar. O suor escorria da testa às bicas. A cachaça ainda esquentava os couros e aumentava a sensação de quentura. Mas nada nos desanimava.

Perto do meio-dia, a manifestação começou a andar. Andando, riscávamos com as tintas spray – que agora saíam das mochilas e chegavam às nossas mãos - as paredes com palavras e expressões de protesto como “Fifa = máfia”; “vandalismo é a Copa”; “poder para o povo“; “viva o povo nas ruas”; “fora Fifa”, “quanto mais repressão, mais união”, etc. Muitos nos taxavam de vândalos, não entendendo a forma de expressão política e de enfrentamento à ordem imposta que fazíamos ali. “Manifeste-se à sua maneira que nos manifestaremos da nossa”, dizíamos. E seguíamos.

Vale aqui um parêntese sobre os tais “atos de vandalismo” nessas recentes manifestações que ocorrem em todo o Brasil. De antemão, o conceito é muito relativo. O que pode ser vandalismo para uns pode não ser para outros.  Mas é preciso aprofundar a discussão. Replicar nos muros expressões como as citadas acima constitui vandalismo? Para mim, não! Reagir (repare bem na palavra: REAGIR!) com pedras, pedaços de pau, chinelas e o que tivesse pela frente a incontáveis balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo lançadas por um aparato repressor e violento, que trata o povo como inimigo, é vandalismo? Para mim, não! É apenas a reação natural e óbvia de uma massa enfurecida por ter sido covardemente agredida. Faço uma leitura de que os manifestantes que consideram esses atos supracitados como vandalismo são os mesmos que, com um discurso ufanista de “amor à pátria”, querem impedir os militantes de partidos políticos de se manifestarem. Sou apartidário, mas considero absolutamente legítima a participação da militância de partidos de esquerda e de movimentos sociais nesses protestos. Ora, justo agora que o povo vai às ruas, querem calar essa militância? Ora, justo agora que o povo vai às ruas, querem limitar o direito e as formas de protesto com conservadorismos travestidos de “amor à pátria” e discursos sem substância e opacos ideologicamente em prol do “fim da corrupção”? Sobre este ponto da discussão, vale demais a leitura dos textos “Os perigos da ‘pátria amada’”, de Camila Petroni e Débora Lessa, publicado no Brasil de Fato e "O Pacifismo contra-revolucionário"publicado na página Recife Resiste.

(Charge: Latuff)

Vandalismo – e covardia! - é a Polícia Militar, instituição que já teve seu fim solicitado pela ONU, iniciar um ataque a manifestantes de braços levantados (num claro sinal de “vejam, não estamos com nada nas mãos”) que caminhavam na sua direção. Isso, sim, é vandalismo! Neste sentido, vale a pena trazer à tona para a sociedade um debate amplo e profundo sobre a desmilitarização das polícias. Essa discussão é mais do que necessária, urge! Vandalismo é uma organização mafiosa como a Fifa burlar as leis de um país, cercear o direito do povo desse país de ir e vir  e, pior, constatar esse país se dobrar de joelhos às exigências da toda poderosa organização, tudo em nome do busine$$. Isso é vandalismo, dos grandes. E praticado contra cerca de 190 milhões de brasileiros. Vândalo é o sistema de exclusão, opressão e controle que nos é empurrado goela abaixo diariamente. Essa conversa fiada de manifestação pacífica (a melhor definição seria passiva) que a mídia tenta agora apoiar e disseminar é só mais um instrumento para o controle, para a domesticação da massa popular. Manifestações populares de massa têm o dever de transgredir a ordem imposta, têm o dever de inquietar os donos do poder e, como consequência, confrontar seu aparato repressor. Isso NÃO é vandalismo! É luta social! Sobre esta questão, vale a leitura de "Vandalismo por direito", na página Incandescência. Fecha parêntese.

Pouco depois de iniciada a caminhada, a primeira barricada policial. Mas já? Não temos o direito inalienável de ir e vir na nossa cidade? Pressionamos. Nessa hora, éramos muito na linha de frente. Fazendo pressão, dialogando com os PMs para que nos deixassem seguir em frente. Nada feito. O momento para superar a primeira barreira foi quando uma moça, sozinha, aparentemente “liberada” por outros policiais, furou o bloqueio e foi em direção a um PM conversar. Este empurrou-a. Foi o estopim. Fomos para cima, mas, pelo que pude perceber, ainda sem agressão física a nenhum fardado. Íamos andando, avançando, derrubando as grades de proteção. Eles ainda tentaram resistir, mas como éramos muitos, tiveram que recuar. Foi o primeiro gol!

Agora, quem estava à nossa frente era o Batalhão de Choque, treinados para este tipo de situação de enfrentamento. Seguimos caminhando. E avançávamos. De repente, inesperadamente, o primeiro ato covarde: irrompem no céu dezenas de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha disparadas contra uma massa de manifestantes que caminhava. Sim, eram apenas manifestantes caminhando. Esse foi o motivo para a ação policial completamente desproporcional. Pânico. Terror. Gritos em desespero. Fumaça branca e densa. Pessoas caindo no chão quase desmaiadas. Desculpem o clichê, mas o cenário era, sim, de guerra. Nesse momento, também corri das bombas e das balas. Era mais um na multidão. Os olhos ardiam em brasas. A boca sufocada por aquele gás. Uma falta de ar repentina me tomou conta que achei que desmaiaria também. Procurei pelos amigos que estavam com os vinagres e não os encontrei. Parei. Não aguentava mais. Com as mãos no joelho, cuspia, vomitava, nem sei bem dizer o que era aquela reação do meu corpo a dezenas de bombas daquele gás. Vi um manifestante próximo com vinagre e pedi um pouco. Molhei na camisa e passei no rosto. Alívio! Quando me recompunha, encontrei um dos amigos que estavam comigo antes das bombas. Estava também ainda meio atordoado, com olhos e rosto avermelhados, cabelos assanhados. “Filhos da puta!”, disse ele. Repeti o mesmo.

O que se viu em seguida foi uma reação à covardia da Polícia. Pedras, tapumes de madeira, chinelas e o que podia ser lançado eram jogados na direção dos PMs. Nesse momento, fazíamos barricadas para nos aproximarmos novamente da Tropa de Choque. Os madeirites das obras na avenida serviam-nos de escudo. Vi dois amigos também na linha de frente fazendo filmagens, trabalhando. Soube, mais tarde, que um deles levou um balaço de borracha no olho. Depois de umas cinco tentativas, percebemos que as balas de borracha e as bombas de gás não teriam fim. Não nos deixariam passar daquele “limite” imposto por eles.

(Foto: Mauri Melo/O Povo)

Nesse momento, uma multidão que não estava na linha de frente do confronto já parava a BR-116. O tráfego de veículos foi interrompido. A BR era do povo! Nessa hora, já tinha me reencontrado com cinco do grupo de doze que inicialmente saiu da Cidade dos Funcionários a pé para o Makro. Contudo, queríamos chegar ao Castelão, protestar na frente do estádio. A solução foi tentar a outra rota de chegada ao estádio: Avenida Paulino Rocha, nas Cajazeiras.

Mais uma longa caminhada a pé e novamente chegávamos a mais uma zona de confronto. Uma multidão já se encontrava por lá na hora em que chegamos. Passamos as duas primeiras barreiras na base da conversa, no diálogo, mas também na pressão. Os PMs, assustadiços, liberavam a passagem. Esses, reparei, não tinham as bombas de gás que o Choque lança mão. Contudo, a terceira barreira de policiais era a cavalaria. Não nos deixariam passar. Muita conversa, negociação, pressão e nada! Foi aí que um grupo à direita de onde estávamos forçou a passagem e, quando vimos os primeiros cavalos com os PMs recuando, avançamos do nosso lado também. Eles, os policiais, recuavam com um olhar amedrontado. Naquele instante, uma profunda sensação de êxtase tomou-me conta. Ao olhar ao redor, percebi que o êxtase não era só meu, era coletivo. Gritávamos loucamente: “Viva o povo nas ruas”; “avança, avança”. Olhei para os amigos ao lado e vi também suas emoções. Abraçávamo-nos, comemorávamos a façanha.

Na quarta barricada, mais uma vez a Tropa de Choque. E as cenas da Alberto Craveiro se repetiram na Paulino Rocha. Bombas de gás e balas de borracha eram disparadas freneticamente contra a massa, que revidava com pedras e paus. Avançávamos um pouco e, aí, mais bombas e mais balas. “Cadê o vinagre? Cadê o vinagre?”, perguntava. Foi assim várias vezes. Avançávamos e eles reagiam ao seu modus operandi: balas e bombas!

No final da tarde, da turma inicial de doze, éramos, agora, apenas quatro. Havíamos saído de casa ainda de manhã. Estávamos sujos, suados, famintos e sedentos, já sem forças suficientes para continuar naquela guerra insana e desleal. Dessa vez, diferente do que tinha sido a tônica todo o dia, nós quatro chegamos a um entendimento ali mesmo, após mais uma saraivada de balas e bombas, de que era chegada nossa hora de recuar. Voltamos às nossas casas, sujos, suados, famintos e sedentos, mas com a convicção de que naquele dia voltamos para casa mais cheios: de fome, de luta, de vida vivida, de sangue nas veias.

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