Córdoba é a segunda maior
cidade da Argentina, com cerca de 1 milhão e 400 mil pessoas. É capital da
província de mesmo nome. O cearense esteve por lá. Desceu o terminal rodoviário,
vindo de Villa Maria, mochila nas costas, todo empacotado – sabia do frio que o
esperava. Dobrou aqui, quebrou ali, subiu uma ladeira íngreme – não como a do
Morro Santa Terezinha, em Fortaleza, ou a da Misericórdia, em Olinda, mas que ainda
assim fazia a mochila pesar uns vinte quilos mais – e chegou ao albergue.
De cara, na entrada, viu uns
ímãs de geladeira inéditos e pensou em comprá-los. Logo depois, repensou: Onde
é que vou botar esses bichos mesmo? O cearense gosta de ímãs de geladeira, mas
a sua já está cheia deles. Chegando lá, empurro um daqui, outro dali e vou
achando espaço, matutou novamente. Onde ia encontrar outros daqueles? Não
sabia. Após a hesitação inicial, comprou-os. Em seguida, foi ao quarto onde
ficaria, rebolou a mochila na cama (iria dormir em cima no beliche), pegou um mapa
na recepção e foi bater pernas pela cidade.
Estava com hambre. Comeu um sanduíche com papas fritas. Os argentinos não comem
arroz com feijão. O cearense sentiu falta do arroz com feijão do self-service sem peso com direito a suco
– de cajá, acerola, caju, maracujá ou tamarindo - e duas
opções de mistura onde come na Barão do Rio Branco, no Centro, todo dia. Mas
uma falta até aquele momento suportável. Dava para aguentar! Foi então dar uma
volta pelas bandas da Universidade de Córdoba, uma das mais antigas da América
Latina, com 400 anos. Soube de um passeio guiado por lá e se mandou. No
caminho, como fazia frio, aligeirou os passos e pensou que tinha se preparado mais ou menos para
aquela temperatura.
O guia da universidade falava
muito rápido e com a língua frouxa, salivando o tempo todo. Parecia que sua
língua pegava fogo e ele tinha que falar e soprar ao mesmo tempo. Um horror!O
cearense se esforçava como podia: não só o escutava, mas fazia a leitura labial
para tentar entender o que o hermano
dizia. Viu livros medievais, paredes e portas gigantes do século XVII, além de
mapas-múndi antiquíssimos que davam conta da existência de um certo Siará
Grande, pelas bandas do Nordeste do Brasil. Foi então que voltou-se novamente
para sua terra e, de súbito, pensou que o prefeito de Fortaleza e o governador
do estado agem como se vivessem ainda à época do Siará Grande.
- Provincianos!, pensou
alto. Os demais o observaram com olhos de repreensão. Fez uma cara de que não
era com ele. Ora, bolas. As palavras lhe tinham escapado. Que mal há nisso?
Saindo de lá, perguntou a
uma moça na rua o que tinha de legal para fazer por perto. Ela lhe contou sobre
uma feira de artesanato cerca de oito quarteirões dali donde a tinha abordado.
No percurso até lá, vagarosamente a paisagem se manchava de um alaranjado
intenso, anunciando o poente. O frio apertava; a temperatura caía, acompanhando
a saída de cena do astro rei. Enquanto caminhava, juntava as mãos, levava-as
próximas à boca e soprava forte, para enganar a frieza, mas estimulado pela
experiência de estar indo de encontro ao desconhecido, logo esquecia o frio e voltava-se
para suas divagações soltas sobre o mundo.
Chegando ao Paseo de las Artes – como a feirinha era
conhecida, passou a observar os artesanatos. Flanou, passeou, olhou… Havia
alguns sebos também. Não se conteve quando viu um livro raríssimo, que não se
encontra fora da Argentina, com histórias da Mafalda e anotações do Quino, dos
anos 80. Catou-o em meio aos demais. O cearense gosta muito da Mafalda; pensa
que, se tivesse uma filha, ficaria feliz se fosse questionadora como a
garotinha dos quadrinhos. Levou-o.
Passeou pela feira inteira. Àquela
hora, o sol já havia se escondido completamente por trás das montanhas e o céu
era um azul púrpuro surreal. A lua, que dias antes estivera cheia e amarelada, agora
minguava, como que sentindo falta das estrelas. Pobres cidades grandes, matutou
o cearense, que não podem contemplar a beleza de um céu estrelado. Queria
relaxar, se deitar em um jardim qualquer para fitar as três-marias, mirar a
estrela d'alva ou torcer para ver rasgando
o céu uma estrela cadente – e aí fazer seu pedido mágico. Mas relembrou que as
estrelas se escondem dos habitantes das cidades grandes porque estes não se
importam muito em admirá-las. Claro, há as exceções. E o cearense gosta das
exceções. Que bom seria se se esbarrasse com as exceções, imaginou.
De repente, avistou um artesão com dreads, que vendia pulseirinhas e balançava
a cabeça compassadamente ao ritmo de Africa
Unite, que saía de uma caixinha de som muito semelhante às que os camelôs vendem
na Major Facundo ou na Pedro Pereira. Se identificou com aquela cena, Africa Unite é uma das preferidas dele. Havia
chegado segunda-feira à província de Córdoba e até aquele dia, sábado, não
tinha provado a erva argentina. Como gosta de dizer, já estava “fumando nas
calças” de tanta vontade. Chegou no rasta, também balançando a cabeça ao ritmo
do reggae - para mostrar-lhe que a música igualmente lhe agradava, e, com
extrema confiança de que não seria mal correspondido, perguntou se ninguém ali
podia salvar. Pablo, o argentino sangue-bom que vendia as pulseirinhas, disse
que sim, agora balançando a cabeça de cima para baixo, repetidas vezes. Fez
menção de que iria ali perto e pediu ao cearense que cuidasse dos seus
artesanatos, que estavam expostos numa banquinha. Quanta confiança!, pensou
ele. Poucos minutos depois, Pablo voltava com a ganja. O preço, bem, digamos
que foi um preço para turista. O cearense ainda deu uma chorada, mas não teve
conversa. Resignou-se. Sabia, no fundo, que as “quengadas” que se levam nessas
transações são próprias de um forasteiro nas terras dos outros. Ainda pediu uma
seda a Pablo, que prontamente o atendeu.
- Muchas gracias! Salvó!, disse
ele ao argentino, fazendo gesto de apertar-lhe a mão, no que novamente foi prontamente
correspondido.
Saiu dali e foi se escorar
na mureta que dava para um canal por onde escorria o rio Suquía, que corta a
cidade de Córdoba. Foi aí que chegou Ariel, aparentemente na metade dos 20, altura
mediana, moreno, de rasgos indígenas e muito sorridente, artesão, que faz
acabamento de quadros e os expõe, junto com seu amigo que pinta as telas, em
galerias de arte. Estava também somente a passeio pela feira. Pediu um trago ao
cearense, que, sem pestanejar, deu-o. Logo, percebeu que o argentino tinha um
copo na mão e também pediu um trago. Era vinho, e dos bons. Os vinhos da
Argentina, em sua maioria, são bons e baratos. O cearense pensou que seria
muito bom se o São Braz ou o Padre Cícero tivessem aquele mesmo gosto. Voltou a
si quando Ariel perguntou-lhe de onde era. Enchia o peito para dizer que era
cearense.
Em pouco tempo, outro
artesão, branco, alto e magro, de uns 30 anos aproximadamente, que expunha ali
no Paseo de las Artes seu trabalho de
objetos feitos de metal – arte muito boa -, escutou a conversa e se intrometeu,
num português embolado, mas completamente entendível:
- Ei cará, eu morê em
Trancoso, Bahia. Falô portuguê rapá!
- Que irado, ops, que copado!, disse o cearense, fazendo
uso de uma gíria argentina que tinha aprendido recentemente.
Os argentinos riram do “que copado”. O cearense riu do português
arranhado de Álvaro, o argentino que havia morado em Trancoso, no sul da Bahia.
Riram juntos, cumplicimente. Daí, a charla
se desenrolou. Falaram de muitas coisas, de viagens – Álvaro já tinha feito
quase uma volta inteira pela América do Sul -, artesanato, drogas, calor, frio,
contra-cultura, mulheres – Álvaro tinha se encantado com as baianas…
Logicamente, falaram também de futebol, sobre o Fortaleza e seu mascote, o Leão,
sobre o Boca Juniors, una pesadilla
para os brasileiros na Libertadores, etc. O entrevero veio quando o cearense,
num despertar de gaiatice, disse em alto e bom som, para que os argentinos o
entendessem bem:
- Mira, con todo el respecto, pero Pelé fue mucho mejor que Maradona.
Os argentinos discordaram de
prontidão. Defendiam a todo custo o contrário. Disseram que Pelé realmente era
o rei, pero Diego es Dios. Vendo que
a discussão não teria fim, o alencarino os interrompeu e falou que não há dúvida
que Messi é hoje o melhor do mundo. A estratégia deu certo. Todos convergiram e
a paz voltou a reinar. Simultaneamente, o cearense se dava por satisfeito, pois
não poderia deixar passar a oportunidade de dizer para argentinos dentro da
Argentina que Pelé foi melhor. Missão cumprida!
Vendo aquela cizânia, foi
então que surgiu Omar, também artesão que expunha ali, e que era, de longe, o
mais experiente daquela turma, do alto dos seus mais de 50 anos. Os cabelos
grisalhos anunciavam a experiência enriquecedora daquele viajante, sem filhos e
sem mulher, que levou a vida feito nômade pela América Latina. Agora, queria se
aquietar, comprar um terreninho em Canoas, uma praia do Equador em que havia sol
o ano todo. O cearense disse a ele que em sua cidade também havia sol
praticamente todo o ano, mas Omar deu de ombros; queria Canoas, não Fortaleza. Omar
tinha vivido na pele a ditadura Argentina, a mais sanguinária da América do
Sul, com cerca de 30 mil desaparecidos. Viveu toda a repressão, o medo de ser
mais um a “desaparecer”, se afugentou nas drogas à época, contou. Enquanto
falava sobre os militares, sua feição mudara drasticamente e seu olhar, de um
verde amendoado, se perdia naquele céu violeta, talvez buscando mirar o nada naquele
momento. Fez-se um silêncio gritante. E, então, Omar interrompeu-o, pedindo o
copo com um gesto e um grunhido – han! - e dando um grande gole na cerveja
preta que escondíamos num saco de pão que Ariel tinha arranjado, pois os
policiais não podiam ver, uma vez que era proibido beber ali pela feirinha. Resquícios
da ditadura, quiçá.
A conversa estava boa e
Ariel, sempre sorrindo, o que fazia seus olhos pequenos repuxarem, sugeriu ao
cearense que bolasse outro. Atendido. De mão em mão, compartilharam aquele faso. O cearense disse que los fumantes de yerba formam uma tribo
universal, que se entendem e se “salvam” mutuamente em qualquer lugar do mundo.
Se identificam, por assim dizer. Os argentinos concordaram, mexendo a cabeça
positivamente e falando coisas muito rápidas, cheias de lunfardos incompreensíveis a um não-nativo. Nestes momentos em que os hermanos conversavam entre si, se
voltava à pracinha, às ruas do bairro onde mora. Como estará a galera agora?
Fazendo o quê? Os argentinos o recolocavam na conversa, puxando-o pela atenção.
Aquela cumplicidade, aqueles risos todos, aquela sintonia com três pessoas que
acabara de conhecer lhe transmitiam uma sensação boa. Se sentia próximo deles. Pensou
que o mundo é uma grande aldeia, não numa visão mcluhaniana, mas existencialmente
falando. Aquela experiência, de certa forma, comprovava isso.
Tomaram mais cervejas.
Álvaro e Omar começaram a desfazer suas barraquinhas. Junto com Ariel, observava
o desmonte e conversavam sobre a vida. Ariel queria muito ir à Copa de 2014 no
Brasil e passar um tempo por lá. O cearense disse que Fortaleza será sede do
mundial e que o argentino poderia se instalar em sua casa por um tempo até que
arrumasse um canto fixo para morar. Na verdade, pensou mesmo nas manifestações
que vão varrer o país durante a Copa e que seria uma vivência muito rica para o
argentino participar delas. Mal sabe o que o espera, pensou. Contudo, pelo
pouquíssimo que conhecia de Ariel, vaticinou que ele iria gostar de estar
também na linha de frente, de viver aquilo.
Combinaram os quatro de sair
dali para tomar mais. O cearense, friorento que é, sentiu alívio, pois já
estava passando mal com a temperatura, que devia estar em torno de 1 a 3 graus.
Era o que a meteorologia dizia. Àquela altura, o vento que farfalhava as folhas
das árvores soprava sua brisa fria e se embiocava por entre as frestas do
agasalho, aumentando a sensação gélida. Não sentia mais o nariz nem as
bochechas, que mais pareciam de cera. Foi, então, que deu-se conta que não
estava preparado coisa nenhuma para o frio que o esperava.
Entraram todos no Fiat
Prêmio 1994 de Omar, desceram a Belgrano à procura de um boliche, acenderam outro faso.
No bar, tomaram mais algumas cervejas e outros mais fernet con coca, a bebida típica de Córdoba, que beberam coletivamente,
num mesmo copo. Disse que parecia com rum, mas os argentinos disseram que não
tinha nada a ver. Não quis encompridar a discórdia. Fez que sim com a cabeça e
tomou outro gole. Ficaram ali até umas horas. Riram, tiraram onda, identificaram-se,
foram cúmplices… Nos horários, Omar deixou Ariel próximo à rua Belgrano, Álvaro
na casa de sua namorada e o cearense no albergue. Trocou contatos com os
argentinos. Agradeceu a Omar pela carona e foi-se.
No albergue, ainda
assimilando toda aquela noite, pediu uma Quilmes de um litro para beber e
pensar. Pensou que a vida é grande. E que as fronteiras são só coisas que põem
na cabeça das pessoas para que elas não percebam que a vida é grande. Pensou
que é importante que todos saibam que a vida é grande, tal como a grandeza do
céu quando contava estrelas ao lado da amada, de barriga para cima, no jardim de sua casa. Pensou que
talvez o mundo tenha jeito. Que as pessoas podem ainda despertar que a vida é
grande e darem de ombros às fronteiras, aos muros que as separam. Pensou que,
sim, a vida pode ser sem fronteiras, sem muros de segregação. Pensou que antes
de ser cearense, de pertencer à sua terra, à sua gente, pertencia ao mundo, à
vida. Assim como todos os outros, assim como os argentinos que tinha conhecido
naquele dia. Olhou para o copo cheio, onde peixes já nadavam de tanto que havia
pensado, e dessa vez pensou que cerveja é bom. A Quilmes, então… hummmm! Tomou o
copo de um gole só. Já estava borracho!
Não pensou mais nada. Levantou-se da cadeira do bar do albergue, adentrou o
quarto, trepou-se no beliche e dormiu o sono dos sonhadores!
Putz Arthur, que onda, muchacho!
ResponderExcluirMuito rica a experiência, e excelente a leitura. Dá pra se sentir lá. Parabéns.
Massa pela leitura! De fato, tentei, de alguma forma, que cada um que lesse a crônica viajasse também um pouco através das linhas...
ResponderExcluirMeu Deus! Que Fantástico, Artur!
ResponderExcluirNão estive com o cearense durante todos esses momentos descritos no texto, mas devo imaginar o quão rica deve ter sido essa pequena e rápida experiência dele com os nativos de um lugar diferente.
Quanto ele deve ter aprendido (e apreendido) da língua, da, cultura, dos valores, do cotidiano e, especialmente, da vida! E porque não dizer... de la oralidad? hahaha!
Conviver pouquinho tempo com o cearense me fez ampliar os horizontes e aprender a enxergar que "as fronteiras são só coisas que põem na cabeça das pessoas para que elas não percebam que a vida é grande." Gracías por esto, sí?
Felicitaciones por esribir (y vivir)con emoción!
Un Abrazo!
Bruna.
Valeu, Bruna, massa demais. Agradeço muito pelas palavras. É isso aí: vivamos sempre dispostos à vida! Abração!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirReli o texto agora depois de quase 1 ano e meio, Arthur. Posso te dizer que foi um teletransporte. Muito bom relembrar essa viagem. Saudades e forte abraço.
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