terça-feira, 10 de setembro de 2013

O black bloc e o polícia: muito além da aparência

(Charge: Chappatte)

*Artur Pires


O amigo que me contou o que relatarei a seguir não é de inventar história. Depois de ouvi-la, acreditei que, sim, as coisas ainda podem se aprumar, se ajeitar, quem sabe. Conta que a história aconteceu domingo, no PV, no jogo do Leão contra o Santa Cruz, de Recife. Foram ao clássico nordestino em cinco. Na caranga a caminho do estádio, entre os tricolores, um black bloc – “com vandalismo, sempre” -, como gosta de dizer, e um policial, do Choque. Amigos. Aparentemente diferentes, essencialmente parecidos. Falavam da manifestação do dia anterior, 7 de setembro, quando houve mais uma vez ataque violento aos manifestantes e diversas outras situações de abuso policial. Os black blocs, por sua vez, na linha de frente, depredavam lojas, bancos, carros, no coração da Aldeota, o bairro símbolo da burguesia fortalezense.

- Ei meninão, te vi ontem descendo ali pela rua do Dragão, já com a camisa reserva no ombro, disse o polícia. 

- Foi mesmo mah? E tu tava aonde?, indagou o black bloc.

- Viu aquelas viaturas escoradas ali perto do Seminário da Prainha?

- Hanhan…

- Então, tava ali e te vi descendo com outro bicho, já instigado.

- Hahahahaha… Maxo, ontem a galera se garantiu. Destruímos vários bancos, “lojazonas” de marca… Ooora cumpade, esses safados roubam direto da gente mah, é só sugando… Tem que fazer alguma coisa pra eles se incomodarem, verem que o negócio tá ruim pro lado deles, que o povo não aguenta mais essa opressão, mah.

- Ééé… Esse bicho é doido! Hehehe! Mas tu viu lá que o comandante só mandou atacar mesmo naquela hora ali da Santos Dumont com Desembargador, né? Deixou vocês na limpeza por um tempão.

- E tu tava atirando mah?

- Não, não. Só com o escudo. Fiquei com a missão de fazer a proteção.

-Ei maxo, e se tu tivesse com a missão de atirar, tu disparava?

- Ia fingir. Levantava a arma, fazia a posição de tiro, mas só de “agá”.

- É mesmo é mah?, disse o black bloc, levantando mais à testa uma das sobrancelhas e encolhendo a outra, numa atitude de descrença.

- Sério! Óia aí, esse bicho num acredita não.

- Se você tá dizendo, acredito mah, acredito!

- Ei, maxo, vamos guardar o carango aonde? Aqui tem mais vaga não, cumpade. Lotado!,  disse outro tricolor, interrompendo a conversa e já doido para tomar uma gelada na barraquinha da esquina, comendo, para acompanhar os goles, um churrasquim de gato.


Guardaram o carro próximo à Barão do Rio Branco, a poucos quarteirões do PV. No caminho, diziam da importância do Leão ganhar aqueles três pontos, uma vez que os resultados da rodada tinham sido todos favoráveis. Depois de algumas cervas, entraram. Casa cheia, nação tricolor fazendo uma festa bonita. O Fortaleza pressionou o Santinha o primeiro tempo quase todo. Mas o gol não veio. Pior, Assisinho, melhor jogador, ainda saiu machucado. No intervalo, chupando um marujinho cada um, que é de lei, o black bloc e o polícia retomaram o diálogo sobre o dia anterior:

- Pois é, maxo… E os infiltrados, tem um bocado viu. O nêgo se liga!, disparou o revolucionário black bloc.

- Tô ligado. É pra polícia saber pra onde a galera tá indo, o que tão planejando. Tinha da PM, da Federal, da Civil…

- Vixi, cumpade. Vários, né, mah?

- Ó! Vários!

- Ei, maxo, nas horas lá do pânico, quando vocês vêm pra cima mesmo, tu tem que dar o toque pro nêgo da rota de fuga, mah. Pra num rodar, né, cara?, brincou sério o black bloc, com o sorriso escorregando pro canto da boca.

- Hehehehe. Tô ligado. Esse bicho…. É uma onda!, disparou o polícia.

- Tô falando é serio, baitola!, enfatizou o revolucionário, abrindo mais os olhos e fazendo um grande gesto de mãos.

- Pode crer, vai dar certo. A gente conversa.

- Leva o celular na próxima, maxo. Esquece não! Hehehe!

O polícia balançou a cabeça positivamente e riu tímido. Àquele momento, pensou na contradição que é trabalhar naquela corporação. Queria mesmo era estar do outro lado. Mas não. A vida é nua e crua. Pede, amiúde, pragmatismo. Ele precisa se sustentar, pagar a prestação do carro e a ração do cachorro, além de ajudar a mãe nas despesas domésticas. Precisa daquele dinheiro, mesmo que ele venha manchado de violência e de militarismos dos quais discorda. No entanto, o paradoxo o incomoda; tira-lhe, às vezes, até mesmo o sono.

Recomeça o segundo tempo. O Leão continua pressionando. Faz dois gols antes dos vinte minutos. A torcida vibra feliz. O black bloc e o polícia se abraçam efusivamente. Tiram a camisa, e sacodem-na para o alto, ao ritmo da torcida: Leãããoooo, nós gostamos de você, nós gostamos de você, nós gostamos de você…

Ao fim da partida, com vitória do Tricolor de Aço, comemoram comendo um feijão verde regado a cervejas. O polícia não bebe cerveja, mas come que é uma beleza. Perto de chegarem aos seus lares, no caminho, combinam o surfe semanal.

- Maxo, no Portão tem altas! E se não tiver lá, tem no Titan ou no Vizinho. Né não, Paiacas?, diz o black bloc, fazendo um gesto incisivo de queixo, apontando para um terceiro tricolor, como que pedindo uma confirmação das “altas” ondas.

- Tem viu, menino. Altas! Vale demais, mah. Máquina de ondas. É um crowd, mas tem onda pra todo mundo. De rocha! E com uma formação irada!

- Pois, então, vamo nessa. A gente se fala aí, disse o polícia, à beira de casa, apertando as mãos dos tricolores e, em seguida, entrando no jardim e acarinhando o seu cachorro, que o esperava ansioso e saltitante, balançando o rabo.  

(Ilustração: reprodução de um grafite do inglês Banksy)

O sonho do polícia é sair da polícia, para acabar de vez com as crises existenciais que o paradoxo da sua condição lhe impõe. Caiu de paraquedas num vespeiro, e, para melhor passar, teve de transigir às ordens das vespas. Mas não vê a hora de livrar-se definitivamente das picadas. Quer morar numa casa tranquila, perto da praia, aonde possa ir andando surfar, com espaço para cultivar seus pés de planta, brincar com os cachorros e, quem sabe um dia, correr com os filhos. Como gosta muito de crianças – tem sobrinhos e os quer um bem danado -, sonha com o dia em que não verá mais nenhuma delas fazendo malabarismos no sinal para sobreviver ou reclamando fome embaixo das marquises dos viadutos. Quer viver em paz, sem precisar pegar em armas, pegando ondas. São geralmente essas coisas que se confidencia quando põe a cabeça no travesseiro e conversa com seus botões, antes de pegar no sono.

O sonho do black bloc, anarquista, é lutar pelo fim do capitalismo, para que as pessoas possam viver verdadeiramente livres do fetiche da aparência, verdadeiramente livres das opressões invisíveis, mas que oprimem. Quer uma casa perto da praia, aonde possa surfar sempre, com espaço para cultivar seu pomar, sua hortinha, seus pés de planta, inclusive sua ganja. Quer viver em paz, com sabedoria e simplicidade, pegando ondas. “Em paz” não quer dizer que não queira também lutar por uma nova sociedade, justa e livre.  Mastiga esses pensamentos soltos no primeiro sono, aquele de leve, quando ficamos em cima do muro, entre a crueza do consciente e as profundezas mais enigmáticas do inconsciente.

O black bloc e o polícia, no frigir dos ovos, são aparentemente diferentes, mas essencialmente parecidos. Enxerindo-me a fazer uma releitura de Sartre, diria que a essência precede a aparência.

* Artur Pires é amigo pra toda hora do black bloc e do polícia. 

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segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O cearense, os argentinos e os muros que separam a vida






























(Fotos: arquivo pessoal)


Artur Pires

Córdoba é a segunda maior cidade da Argentina, com cerca de 1 milhão e 400 mil pessoas. É capital da província de mesmo nome. O cearense esteve por lá. Desceu o terminal rodoviário, vindo de Villa Maria, mochila nas costas, todo empacotado – sabia do frio que o esperava. Dobrou aqui, quebrou ali, subiu uma ladeira íngreme – não como a do Morro Santa Terezinha, em Fortaleza, ou a da Misericórdia, em Olinda, mas que ainda assim fazia a mochila pesar uns vinte quilos mais – e chegou ao albergue.

De cara, na entrada, viu uns ímãs de geladeira inéditos e pensou em comprá-los. Logo depois, repensou: Onde é que vou botar esses bichos mesmo? O cearense gosta de ímãs de geladeira, mas a sua já está cheia deles. Chegando lá, empurro um daqui, outro dali e vou achando espaço, matutou novamente. Onde ia encontrar outros daqueles? Não sabia. Após a hesitação inicial, comprou-os. Em seguida, foi ao quarto onde ficaria, rebolou a mochila na cama (iria dormir em cima no beliche), pegou um mapa na recepção e foi bater pernas pela cidade. 

Estava com hambre. Comeu um sanduíche com papas fritas. Os argentinos não comem arroz com feijão. O cearense sentiu falta do arroz com feijão do self-service sem peso com direito a suco – de cajá, acerola, caju, maracujá ou tamarindo - e duas opções de mistura onde come na Barão do Rio Branco, no Centro, todo dia. Mas uma falta até aquele momento suportável. Dava para aguentar! Foi então dar uma volta pelas bandas da Universidade de Córdoba, uma das mais antigas da América Latina, com 400 anos. Soube de um passeio guiado por lá e se mandou. No caminho, como fazia frio, aligeirou os passos e pensou que tinha se preparado mais ou menos para aquela temperatura.

O guia da universidade falava muito rápido e com a língua frouxa, salivando o tempo todo. Parecia que sua língua pegava fogo e ele tinha que falar e soprar ao mesmo tempo. Um horror!O cearense se esforçava como podia: não só o escutava, mas fazia a leitura labial para tentar entender o que o hermano dizia. Viu livros medievais, paredes e portas gigantes do século XVII, além de mapas-múndi antiquíssimos que davam conta da existência de um certo Siará Grande, pelas bandas do Nordeste do Brasil. Foi então que voltou-se novamente para sua terra e, de súbito, pensou que o prefeito de Fortaleza e o governador do estado agem como se vivessem ainda à época do Siará Grande.

- Provincianos!, pensou alto. Os demais o observaram com olhos de repreensão. Fez uma cara de que não era com ele. Ora, bolas. As palavras lhe tinham escapado. Que mal há nisso?

Saindo de lá, perguntou a uma moça na rua o que tinha de legal para fazer por perto. Ela lhe contou sobre uma feira de artesanato cerca de oito quarteirões dali donde a tinha abordado. No percurso até lá, vagarosamente a paisagem se manchava de um alaranjado intenso, anunciando o poente. O frio apertava; a temperatura caía, acompanhando a saída de cena do astro rei. Enquanto caminhava, juntava as mãos, levava-as próximas à boca e soprava forte, para enganar a frieza, mas estimulado pela experiência de estar indo de encontro ao desconhecido, logo esquecia o frio e voltava-se para suas divagações soltas sobre o mundo.

Chegando ao Paseo de las Artes – como a feirinha era conhecida, passou a observar os artesanatos. Flanou, passeou, olhou… Havia alguns sebos também. Não se conteve quando viu um livro raríssimo, que não se encontra fora da Argentina, com histórias da Mafalda e anotações do Quino, dos anos 80. Catou-o em meio aos demais. O cearense gosta muito da Mafalda; pensa que, se tivesse uma filha, ficaria feliz se fosse questionadora como a garotinha dos quadrinhos. Levou-o.

Passeou pela feira inteira. Àquela hora, o sol já havia se escondido completamente por trás das montanhas e o céu era um azul púrpuro surreal. A lua, que dias antes estivera cheia e amarelada, agora minguava, como que sentindo falta das estrelas. Pobres cidades grandes, matutou o cearense, que não podem contemplar a beleza de um céu estrelado. Queria relaxar, se deitar em um jardim qualquer para fitar as três-marias, mirar a estrela d'alva ou torcer para ver rasgando o céu uma estrela cadente – e aí fazer seu pedido mágico. Mas relembrou que as estrelas se escondem dos habitantes das cidades grandes porque estes não se importam muito em admirá-las. Claro, há as exceções. E o cearense gosta das exceções. Que bom seria se se esbarrasse com as exceções, imaginou.

De repente, avistou um artesão com dreads, que vendia pulseirinhas e balançava a cabeça compassadamente ao ritmo de Africa Unite, que saía de uma caixinha de som muito semelhante às que os camelôs vendem na Major Facundo ou na Pedro Pereira. Se identificou com aquela cena, Africa Unite é uma das preferidas dele. Havia chegado segunda-feira à província de Córdoba e até aquele dia, sábado, não tinha provado a erva argentina. Como gosta de dizer, já estava “fumando nas calças” de tanta vontade. Chegou no rasta, também balançando a cabeça ao ritmo do reggae - para mostrar-lhe que a música igualmente lhe agradava, e, com extrema confiança de que não seria mal correspondido, perguntou se ninguém ali podia salvar. Pablo, o argentino sangue-bom que vendia as pulseirinhas, disse que sim, agora balançando a cabeça de cima para baixo, repetidas vezes. Fez menção de que iria ali perto e pediu ao cearense que cuidasse dos seus artesanatos, que estavam expostos numa banquinha. Quanta confiança!, pensou ele. Poucos minutos depois, Pablo voltava com a ganja. O preço, bem, digamos que foi um preço para turista. O cearense ainda deu uma chorada, mas não teve conversa. Resignou-se. Sabia, no fundo, que as “quengadas” que se levam nessas transações são próprias de um forasteiro nas terras dos outros. Ainda pediu uma seda a Pablo, que prontamente o atendeu.

- Muchas gracias! Salvó!, disse ele ao argentino, fazendo gesto de apertar-lhe a mão, no que novamente foi prontamente correspondido.

Saiu dali e foi se escorar na mureta que dava para um canal por onde escorria o rio Suquía, que corta a cidade de Córdoba. Foi aí que chegou Ariel, aparentemente na metade dos 20, altura mediana, moreno, de rasgos indígenas e muito sorridente, artesão, que faz acabamento de quadros e os expõe, junto com seu amigo que pinta as telas, em galerias de arte. Estava também somente a passeio pela feira. Pediu um trago ao cearense, que, sem pestanejar, deu-o. Logo, percebeu que o argentino tinha um copo na mão e também pediu um trago. Era vinho, e dos bons. Os vinhos da Argentina, em sua maioria, são bons e baratos. O cearense pensou que seria muito bom se o São Braz ou o Padre Cícero tivessem aquele mesmo gosto. Voltou a si quando Ariel perguntou-lhe de onde era. Enchia o peito para dizer que era cearense.

Em pouco tempo, outro artesão, branco, alto e magro, de uns 30 anos aproximadamente, que expunha ali no Paseo de las Artes seu trabalho de objetos feitos de metal – arte muito boa -, escutou a conversa e se intrometeu, num português embolado, mas completamente entendível:

- Ei cará, eu morê em Trancoso, Bahia. Falô portuguê rapá!
- Que irado, ops, que copado!, disse o cearense, fazendo uso de uma gíria argentina que tinha aprendido recentemente. 

Os argentinos riram do “que copado”. O cearense riu do português arranhado de Álvaro, o argentino que havia morado em Trancoso, no sul da Bahia. Riram juntos, cumplicimente. Daí, a charla se desenrolou. Falaram de muitas coisas, de viagens – Álvaro já tinha feito quase uma volta inteira pela América do Sul -, artesanato, drogas, calor, frio, contra-cultura, mulheres – Álvaro tinha se encantado com as baianas… Logicamente, falaram também de futebol, sobre o Fortaleza e seu mascote, o Leão, sobre o Boca Juniors, una pesadilla para os brasileiros na Libertadores, etc. O entrevero veio quando o cearense, num despertar de gaiatice, disse em alto e bom som, para que os argentinos o entendessem bem:

- Mira, con todo el respecto, pero Pelé fue mucho mejor que Maradona.

Os argentinos discordaram de prontidão. Defendiam a todo custo o contrário. Disseram que Pelé realmente era o rei, pero Diego es Dios. Vendo que a discussão não teria fim, o alencarino os interrompeu e falou que não há dúvida que Messi é hoje o melhor do mundo. A estratégia deu certo. Todos convergiram e a paz voltou a reinar. Simultaneamente, o cearense se dava por satisfeito, pois não poderia deixar passar a oportunidade de dizer para argentinos dentro da Argentina que Pelé foi melhor. Missão cumprida!

Vendo aquela cizânia, foi então que surgiu Omar, também artesão que expunha ali, e que era, de longe, o mais experiente daquela turma, do alto dos seus mais de 50 anos. Os cabelos grisalhos anunciavam a experiência enriquecedora daquele viajante, sem filhos e sem mulher, que levou a vida feito nômade pela América Latina. Agora, queria se aquietar, comprar um terreninho em Canoas, uma praia do Equador em que havia sol o ano todo. O cearense disse a ele que em sua cidade também havia sol praticamente todo o ano, mas Omar deu de ombros; queria Canoas, não Fortaleza. Omar tinha vivido na pele a ditadura Argentina, a mais sanguinária da América do Sul, com cerca de 30 mil desaparecidos. Viveu toda a repressão, o medo de ser mais um a “desaparecer”, se afugentou nas drogas à época, contou. Enquanto falava sobre os militares, sua feição mudara drasticamente e seu olhar, de um verde amendoado, se perdia naquele céu violeta, talvez buscando mirar o nada naquele momento. Fez-se um silêncio gritante. E, então, Omar interrompeu-o, pedindo o copo com um gesto e um grunhido – han! - e dando um grande gole na cerveja preta que escondíamos num saco de pão que Ariel tinha arranjado, pois os policiais não podiam ver, uma vez que era proibido beber ali pela feirinha. Resquícios da ditadura, quiçá.

A conversa estava boa e Ariel, sempre sorrindo, o que fazia seus olhos pequenos repuxarem, sugeriu ao cearense que bolasse outro. Atendido. De mão em mão, compartilharam aquele faso. O cearense disse que los fumantes de yerba formam uma tribo universal, que se entendem e se “salvam” mutuamente em qualquer lugar do mundo. Se identificam, por assim dizer. Os argentinos concordaram, mexendo a cabeça positivamente e falando coisas muito rápidas, cheias de lunfardos incompreensíveis a um não-nativo. Nestes momentos em que os hermanos conversavam entre si, se voltava à pracinha, às ruas do bairro onde mora. Como estará a galera agora? Fazendo o quê? Os argentinos o recolocavam na conversa, puxando-o pela atenção. Aquela cumplicidade, aqueles risos todos, aquela sintonia com três pessoas que acabara de conhecer lhe transmitiam uma sensação boa. Se sentia próximo deles. Pensou que o mundo é uma grande aldeia, não numa visão mcluhaniana, mas existencialmente falando. Aquela experiência, de certa forma, comprovava isso.

Tomaram mais cervejas. Álvaro e Omar começaram a desfazer suas barraquinhas. Junto com Ariel, observava o desmonte e conversavam sobre a vida. Ariel queria muito ir à Copa de 2014 no Brasil e passar um tempo por lá. O cearense disse que Fortaleza será sede do mundial e que o argentino poderia se instalar em sua casa por um tempo até que arrumasse um canto fixo para morar. Na verdade, pensou mesmo nas manifestações que vão varrer o país durante a Copa e que seria uma vivência muito rica para o argentino participar delas. Mal sabe o que o espera, pensou. Contudo, pelo pouquíssimo que conhecia de Ariel, vaticinou que ele iria gostar de estar também na linha de frente, de viver aquilo.

Combinaram os quatro de sair dali para tomar mais. O cearense, friorento que é, sentiu alívio, pois já estava passando mal com a temperatura, que devia estar em torno de 1 a 3 graus. Era o que a meteorologia dizia. Àquela altura, o vento que farfalhava as folhas das árvores soprava sua brisa fria e se embiocava por entre as frestas do agasalho, aumentando a sensação gélida. Não sentia mais o nariz nem as bochechas, que mais pareciam de cera. Foi, então, que deu-se conta que não estava preparado coisa nenhuma para o frio que o esperava.

Entraram todos no Fiat Prêmio 1994 de Omar, desceram a Belgrano à procura de um boliche, acenderam outro faso. No bar, tomaram mais algumas cervejas e outros mais fernet con coca, a bebida típica de Córdoba, que beberam coletivamente, num mesmo copo. Disse que parecia com rum, mas os argentinos disseram que não tinha nada a ver. Não quis encompridar a discórdia. Fez que sim com a cabeça e tomou outro gole. Ficaram ali até umas horas. Riram, tiraram onda, identificaram-se, foram cúmplices… Nos horários, Omar deixou Ariel próximo à rua Belgrano, Álvaro na casa de sua namorada e o cearense no albergue. Trocou contatos com os argentinos. Agradeceu a Omar pela carona e foi-se.


No albergue, ainda assimilando toda aquela noite, pediu uma Quilmes de um litro para beber e pensar. Pensou que a vida é grande. E que as fronteiras são só coisas que põem na cabeça das pessoas para que elas não percebam que a vida é grande. Pensou que é importante que todos saibam que a vida é grande, tal como a grandeza do céu quando contava estrelas ao lado da amada, de barriga para cima, no jardim de sua casa. Pensou que talvez o mundo tenha jeito. Que as pessoas podem ainda despertar que a vida é grande e darem de ombros às fronteiras, aos muros que as separam. Pensou que, sim, a vida pode ser sem fronteiras, sem muros de segregação. Pensou que antes de ser cearense, de pertencer à sua terra, à sua gente, pertencia ao mundo, à vida. Assim como todos os outros, assim como os argentinos que tinha conhecido naquele dia. Olhou para o copo cheio, onde peixes já nadavam de tanto que havia pensado, e dessa vez pensou que cerveja é bom. A Quilmes, então… hummmm! Tomou o copo de um gole só. Já estava borracho! Não pensou mais nada. Levantou-se da cadeira do bar do albergue, adentrou o quarto, trepou-se no beliche e dormiu o sono dos sonhadores!