sábado, 28 de abril de 2012

Contos da Cidade: Dedé, boemia e futebol



O personagem da história de hoje lembra muito Garrincha, no futebol e na boemia (Ilustração: Globoesporte.com)

Artur Pires*

De antemão, cabe aqui explicar que a “Cidade” do título está em maiúscula porque não se refere à cidade de Fortaleza especificamente, mas a uma Cidade dentro da capital: a Cidade dos Funcionários, bairro situado ao sul da metrópole, adjacente às Cajazeiras, ao Cambeba, ao Castelão, ao Jardim das Oliveiras, ao Luciano Cavalcante, à Messejana, ao Parque Iracema, ao Parque Manibura, ao Tancredo Neves e à Vila Cazumba.

A Cidade dos Funcionários tem esse nome porque foi um loteamento pensado pelo Governo do Estado entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970 para abrigar boa parte dos funcionários públicos estaduais. Até meados da década de 1990, a Cidade era considerada periferia de Fortaleza, muito distante dos centros financeiro, comercial, educacional, turístico e de lazer da cidade.

– Mora onde?
– Na Cidade dos Funcionários!
– Vishhhhh!

O diálogo acima foi lugar-comum na época de colégio. Nem ligava, dava de ombros. Para mim, a Cidade dos Funcionários, mi barrio querido, era muito mais que qualquer “vishhhh” sem nenhum conhecimento de causa. De lá para cá, a Cidade cresceu, atraiu serviços diversos, já tem mais de 20 mil moradores, mas ainda não perdeu, em parte, sua cara de bairro periférico e interiorano: vilas de casinhas simples ainda se mantêm resistentes em meio às casas maiores e aos novos prédios e condomínios residenciais que despontam no bairro.

A praça, no cruzamento das avenidas Oliveira Paiva e Desembargador Gonzaga, em frente à igreja e ao colégio público Walter de Sá Cavalcante, ainda é ponto de encontro obrigatório da rapaziada, quer seja para trocar uma idéia despretensiosa, bater uma bola, curtir um “feijão verde”, tomar umas biritas... Sem esquecer dos papudins mais antigos, que marcam presença cotidianamente nas barraquinhas que vendem bebida e churrasquim de gato, cachorro, preá, peba... E, eventualmente, até de gado e porco.

A Cidade é também palco de muitos personagens e de muitos “causos”, terra fértil onde brota muita história boa para contar. Vamos à primeira delas.

Dedé, boemia e futebol

O ano era 1978. A Cidade dos Funcionários, com uma quantidade absurda de terrenos inabitados, tinha mais campo de futebol do que qualquer Centro de Treinamento do Barcelona ou Real Madrid. Até mais do que o glorioso Fortaleza Esporte Clube. Era um campo a cada esquina. Um paraíso pros amantes da arte com a bola nos pés. Dezenas de times formavam a liga de futebol do bairro. Entre todos os jogadores, um destacava-se pela sua fama de craque, artilheiro – e também boêmio: Dedé.

Contam os mais velhos que Dedé foi o maior craque que já desfilou suas habilidades futebolísticas por estas bandas. Dotado de uma técnica apurada para o drible e faro impressionante para balançar as redes adversárias, ainda assim desconfia-se que o filho de Seu Zé Grande e Dona Mariazinha gostava mais das barcas regadas a álcool após os jogos do que propriamente dos inúmeros gols marcados.

Muitos anos antes do trapalhão mais sem graça ganhar fama com o apelido de duas sílabas, Dedé já era unanimidade na Cidade – com o perdão da pobre rima. Então, é mais fácil o Dedé trapalhão ter copiado o apelido do Dedé daqui do que o contrário. Conta a lenda que assim aconteceu. A mesma lenda diz também que o atual zagueiro do Vasco e da Seleção Brasileira, com o mesmo nome, se inspira, toda vez que sobe ao ataque, no filho ilustre da Cidade dos Funcionários. É melhor não duvidar, viu!

Décadas antes de Clodoaldo, o “Capetinha do Pici”, infernizar as zagas adversárias e secar os estoques de bebidas dos botecos de Fortaleza, Dedé já fazia o mesmo pelas bandas daqui da Cidade. Ninguém merece mais a alcunha de “Garrincha cearense” do que o filho de Dona Mariazinha.

Mas voltando ao início da história que vou contar, o ano era 1978. A Seleção da Cidade, treinada por Marreira, um dos mais experientes e exigentes treinadores do subúrbio alencarino, iria enfrentar a Seleção de Messejana. Um clássico da zona sul de Fortaleza. Hoje em baixa, a rivalidade entre os bairros já foi “digna” de ser preciso montar esquema de segurança para manter a integridade física dos jogadores. Dedé, lógico, era o principal nome do time da Cidade. O jogo aconteceria no campo da praça. No dia do clássico, a população do bairro entupiu as calçadas e as beiradas do campo para assistir ao confronto. Ninguém queria perder a oportunidade de presenciar tamanha partida.

O esquema de segurança para o grande confronto estava a postos: o policial Cara Seca (que passou o jogo rezando para que não houvesse nenhuma confusão), o vira-lata Zezim e o galo-de-briga indiano Goeludo. 

O jogo

O jogo começou truncado, pegado; socos e pontapés às escondidas do juiz eram distribuídos à revelia, justificando a rivalidade que existia entre os times. “Do pescoço para baixo é canela”, berravam os torcedores. A partida seguia num toma lá dá cá medonho, até que, aos 25 minutos do primeiro tempo, em jogada na qual driblou três adversários, inclusive deixando o goleiro sentado no chão, Dedé abriu o placar para a Cidade. A galera foi ao delírio! Torcedores se abraçavam efusivamente! O grito da torcida era um só: “Uhhh, terror! O Dedé é matador! Uhhh, terror! O Dedé é matador!” (Como sabemos, anos mais tarde a torcida do Fortaleza ressuscitaria o grito invocando o nome do baixinho Clodoaldo).

Zezim, Goeludo e Cara Seca até tentaram esconder, mas os pulinhos de alegria dos três entregou para quem estavam torcendo.

O jogo seguiu disputadíssimo. Nos últimos 20 minutos do primeiro tempo, após jogadas individuais, Dedé ainda teria mais duas grandes chances de ampliar o placar. Mas, por muito capricho e vontade de querer marcar apenas golaços, foi vencido pelo goleiro Aurélio, que evitou uma tentativa de gol por cobertura e outra de letra.

Marreira se enfureceu no banco de reservas e de lá mesmo berrou ensandecido:

- P*%# que par*&, Dedé! Que por*# é essa? Tá maluco? Vai frescar assim na casa do car*&*#! Bora, vem frescar aqui no banco. Sai do meu time agora! Sai! Sai!

Dedé, contrariado, saiu resmungando, emburrado. Por mais que tivesse perdido os gols por displicência ou puro capricho, tinha sido ele quem tinha armado todas as jogadas perigosas de gol do time da Cidade. Mas a substituição já tinha sido feita. O craque estava fora. E finda o primeiro tempo.

A reviravolta

Dedé, indignado, nem no banco de reservas ficou mais. E eis, então, o momento crucial da partida, que, ironicamente, aconteceu no intervalo e não durante o jogo. O técnico do time de Messejana, Apolônio Abreu, que não era besta nem nada, tratou de aliciar Dedé para jogar o segundo tempo pelo seu time. É bom que se esclareça que à época os amistosos de futebol suburbano não tinham regras pré-determinadas, ou seja, não era o MMA, mas também valia quase tudo. Dedé, extremamente aborrecido com Marreira, que injustamente o havia sacado do time, por mais amor e respeito que tivesse com a Cidade, aceitou o convite.

E então começou o segundo tempo, com Dedé vestindo a camisa verde e branca do time da Messejana. O artilheiro era um ídolo na Cidade. A cena parecia surreal: Dedé, jogando contra a Cidade, dentro da Cidade. Para incredulidade dos torcedores, aquilo realmente estava acontecendo ali, a olhos vistos, no campo da praça, palco principal dos jogos no bairro.

Marreira, preocupadíssimo com a “novidade” no time da Messejana, gritava aos seus comandados:

- Pega o Dedé! Não deixa ele pegar na bola.
- M-mas, professor, o hômi é muito rápido, difícil de marcar, se queixava o zagueiro Aroldo.

E uma hora Aroldo e Durval, zaga titular do time da Cidade, não conseguiram segurar o hômi. Após cruzamento da esquerda de Soares, Dedé subiu entre os dois zagueiros e cabeceou para marcar o gol. O jogo estava empatado. Os torcedores, ao invés de vaiar Dedé, proliferavam xingamentos inenarráveis para o treinador Marreira, o homem que dispensou o craque.

O jogo seguiu. A partida já caminhava para o fim. Aroldo, Durval e o goleiro Paulão comemoravam o fato de levar apenas um gol do matador. Mas artilheiro que é artilheiro, não se pode desgrudar a vista um segundinho sequer. Aos 45min, Dedé pegou a bola na entrada da área, limpou Aroldo com um finta de corpo, Durval veio num carrinho pra “matar ou morrer”, mas “morreu” caído no chão, estatelado, vendo Dedé passar lépido e fagueiro para ficar frente a frente com Paulão. Não deu nem tempo do goleiro da Cidade ver. A bomba de pé direito chacoalhou a rede no ângulo. Golaço! Era a virada da Messejana. Dedé não comemorou o gol em respeito ao seu time de coração. Pouco tempo depois, fim de jogo.

Marreira foi vaiado ostensivamente e teve de sair do campo sob a proteção do trio Cara Seca, Zezim e Goeludo porque se não…. Dedé, ao contrário, foi aplaudido de pé pelos torcedores presentes.

- Bora Dedé, aproveitar agora a barca lá na Lagoa da Messejana com a gente, disse o técnico Apolônio após o fim do jogo.

- Apolônio, até agradeço, mas minha casa é aqui. Vou comemorar por aqui com meus companheiros de Cidade. Eles perderam, mas eu ganhei. Hoje é por minha conta, rapaziada! Afinal, não é todo dia que se faz três gols jogando por times diferentes no mesmo jogo, né?

A barca era a parte que Dedé mais gostava (Ilustração: autor desconhecido)

E assim Dedé compensou o fato de ter feito dois gols no seu próprio time: pagando três litro de cana da boa para os companheiros de Cidade, que, àquela altura, já o haviam perdoado pelos dois gols tomados. O momento etílico, sem dúvida, era a parte que ele mais gostava.

Marreira? Ahhh, o Marreira por muito tempo não pôde botar o pé na rua, tamanha a revolta ds moradores do bairro com a atitude estúpida do treinador.

Hoje, Dedé desfila suas habilidades etílicas pelos bares do bairro. O futebol é coisa do passado, mas as lembranças estão vivas na memória. Homem de voz rouca e conversa saudosa, pode ser encontrado facilmente nos botequins do Chiquim ou da Dindô, cantinhos boêmios tradicionais da Cidade dos Funcionários. Ao vê-lo, os dedos dos pés inchados sempre me despertam a indagação: inchados por conta de muito futebol jogado nos campos de terra batida ou muita cachaça tomada nos botecos dessa vida?

* Artur Pires é mais um morador da Cidade e acha o bairro o pedaço de chão mais legal de morar no mundo 

terça-feira, 24 de abril de 2012

Catadores: a dura vida em meio ao lixo*


(Foto: autor desconhecido)

Vicente Olsen**

Expostos a diversos perigos e riscos à saúde, a jornada diária dos catadores é uma verdadeira prova de vulnerabilidade e resistência

Andam quilômetros nas ruas carregando pesadas carroças, disputam perigosamente espaço com veículos, estão sujeitos a inúmeros riscos à saúde com aquilo que os sustenta. Sob sol escaldante ou no silêncio das noites, juntam um pouco de dinheiro com o que a cidade descarta: o lixo.

Segundo a Prefeitura, estima-se que existam mais de 8 mil catadores de recicláveis em Fortaleza. Destes, pouco mais de 600 se organizam nas 16 associações e cooperativas existentes. A maioria negocia diretamente com os “deposeiros”, como são conhecidos aqueles que compram dos carroceiros, armazenam e revendem para as usinas e fábricas de reciclagem. Os números são incertos, pois a rotatividade na atividade é grande.

Nessa lida com os resíduos sólidos, a insalubridade de trabalho desses agentes ambientais é enorme. Segundo Regina Heloísa Marciel, coordenadora do projeto “Condições de Trabalho dos Catadores de Material Reciclado da cidade de Fortaleza”, realizado pelo Laboratório de Estudos sobre o Trabalho (LET), da Unifor, a manipulação desses materiais sem as condições adequadas de proteção, causam problemas à saúde física e mental.

Entre os riscos físicos destacam-se os problemas de pele, micoses em geral, disfunções músculo esqueléticas, ocasionadas pelo enorme peso que carregam a pé por quilômetros, e as infecções generalizadas. Entre os problemas mais incomuns, observam-se a desnutrição, os problemas respiratórios advindos da inalação de gases putrefatos do lixo e as infecções intestinais, “já que alguns literalmente moram no lixo, comem do lixo”, alerta Regina.

Além do cansaço, de acordo com a pesquisadora há relatos de alguns catadores que “perdem os sentidos, dão um branco” quando estão trabalhando nas ruas. O problema ocorre provavelmente devido à má nutrição e à insolação ocasionada pela exposição constante ao sol sem a proteção necessária, o que também contribui para o desenvolvimento de diversos problemas de pele.

Há ainda os riscos de cortes e ferimentos, além da disputa constante com os veículos no trânsito, podendo gerar traumas físicos. “Tem carro que bota em cima, só de mal”, afirma o coletor José Joseni Barbosa, de 54 anos, que trabalha há 10 anos com materiais recicláveis. “Comecei nessa vida porque não arranjava emprego, e é um trabalho digno”, afirma. Quanto à sua saúde, reclama somente do braço, que “dói muito no fim do dia”, mostrando o punho esquerdo. “É o peso”, afirma conformado.

Há riscos também à saúde mental desses trabalhadores. “Há um problema muito grande com a autoestima dessas pessoas, pois ocorre uma perda de identidade muito grande. Muitos passam a ser identificados com aquilo que eles trabalham”, aponta a coordenadora do LET.

Esse fator é um agravante para o desenvolvimento de doenças sérias como o alcoolismo e o uso de entorpecentes, que é mais intenso entre os homens. Existem denúncias dos próprios catadores de que alguns deposeiros “pagam” em droga, principalmente para aqueles catadores que trabalham sem carroça, apenas “no saco”.

As mulheres coletoras sofrem particularmente com elevado número de infecções urinárias. Uma parte considerável das catadoras pesquisadas pelo Laboratório de Estudos sobre o Trabalho sofre tal complicação devido ao fato de fazerem suas necessidades fisiológicas em vias públicas, não havendo assim a higienização devida.

As famílias catadoras estão sujeitas a mais riscos. Algumas delas levam seus filhos nos carrinhos junto com o material coletado. “Tem vezes que levamos a mais minha nova (de 7 anos), pois não temos com quem deixar”, justifica a catadora Francisca Verônica Cruz, de 45 anos, coletora da Associação de Catadores da Comunidade Universo. Algumas famílias contam justamente com essa ajuda dos filhos para aumentarem a quantidade de material coletado e assim engordarem um pouco mais a renda no fim do dia.

“No caso dessas crianças, os riscos aumentam”, alerta Regina. Por não terem um sistema imunológico como o de um adulto, somadas à má nutrição, às dificuldades inerentes do trabalho e ao tipo de material com que lidam, os mais novos sofrem com micoses, infecções e desidratações.

Mais problemas

(Charge: Benett)

Um agravante identificado pela pesquisa do LET é que boa parte dos catadores não relaciona os problemas de saúde que possuem com o trabalho que exercem. “Vejo isso como uma espécie de desculpa, o trabalho não pode me adoecer, pois é o que eles tem para viver”, procura explicar a coordenadora do laboratório. 

Regina Maciel aponta que as associações são uma forma dos catadores se protegerem e buscarem outra identidade, pois aqueles que trabalham em depósitos enfrentam problemas como a coerção e violência de deposeiros e de outros coletores. Porém, a realidade dos associados não é tão fácil assim. Nos depósitos o pagamento é menor, mas realizado na hora da entrega do material. Já nas associações o pagamento demora e “muitos necessitam do dinheiro ali no dia”, defende Regina. Além disso, nas associações existem brigas e disputas internas, onde a falta de instrução formal dificulta a autogestão dos catadores, “sobram desconfianças”.

Melhorias

José Joseni acredita que as melhorias virão quando a atividade for regulada. “Temos que ter cadastro, fardas, telefones para contato, somos muito discriminados, até da polícia sofremos violência”, denuncia. Para o catador, as associações são essenciais, pois são locais onde guardam as carroças e os resíduos coletados, evitando os perigos de juntar o lixo em casa. Risco que a presidente da Associação de Catadores da Comunidade Universo, Maria de Fátima, conhece bem, já que seu filho contraiu micoses devido ao lixo que juntava em casa.

Para a professora Regina Maciel, o problema é complexo. A pesquisadora critica a falta de uma política unificada entre prefeitura, governos estadual e federal, iniciativa privada e sociedade, defende uma coleta controlada, regulada e fiscalizada pelo poder público em parcerias com a iniciativa privada. Em vez das ruas, os catadores trabalhariam em usinas na separação e seleção dos materiais.

“A sociedade tem que começar a querer saber dos catadores”, desabafa Regina Maciel. “O lixo dá lucro”, porém deve haver esforços para “coibir que isso se sustente na situação de vulnerabilidade dos catadores”, conclui. 

 * Texto apresentado à disciplina de Jornalismo Impresso I, na Universidade Federal do Ceará (UFC)

** Vicente Olsen é historiador (UECE) e estudante do curso de Jornalismo (UFC), além de goleiro do glorioso Shiryu Futebol Clube, o maior time da história da Comunicação Social da UFC

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Falta um pouco de índio em cada um de nós!


(Foto: autor desconhecido)

Artur Pires

Hoje, 19 de abril, é o Dia do Índio. Como bem disse Jorge Ben em seu hino às etnias indígenas Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar (Todo Dia Era Dia De Índio), antes, todo dia era dia de índio, mas hoje eles só têm o dia 19 de abril. Acrescento: nem o 19 de abril eles têm mais. A bem da verdade, o dia é meramente simbólico porque em termos objetivos e reais, no que diz respeito a terem garantido seus direitos, eles não têm nada – ou quase nada.

Quando os portugueses aqui chegaram e invadiram a Terra Brasilis, eles, os índios, já estavam aqui. Quando os mesmos portugueses traficaram negros para cá e povoaram o país com diferentes etnias africanas, eles já se encontravam por estas terras. Sempre estiveram. Mas isso não foi muito valorizado em toda a nossa história, em nossa formação enquanto povo. Os índios foram sendo deixados de lado, escanteados e dizimados, e hoje representam uma parcela ínfima da população brasileira. Por isso causa-me imensa indignação quando, ao ocuparem terras de fazendeiros latifundiários, a mídia os trata como invasores. Ora, senhora Globo e demais asseclas, os índios apenas estão reconquistando o que é e sempre foi deles por direito. Nada mais natural. Nada mais justo.

Hoje em dia, deparar-se com um índio “de verdade” só mesmo embrenhando-se nas matas. São considerados figuras exóticas pela maioria das pessoas. Encontrá-los no espaço urbano é quase tão difícil quanto achar agulha em palheiro (com o perdão do clichê), pois, com o passar dos séculos, as tribos e os costumes indígenas foram negligenciados e relegados a uma importância menor e suas populações afastadas do convívio com os demais brasileiros. Erradamente! Perdemos muito! Para mim, perdemos, principalmente, algo que é muito peculiar dos índios: a sensibilidade necessária para agirmos em acordo com a natureza e seus fenômenos e, a partir daí, aproveitar toda a riqueza e magia que ela nos oferece. Nós, urbanóides, podemos até usufruir dessas riquezas naturais ao irmos à praia tomar um banho de mar (no meu caso, surfar), ao subirmos uma serra e curtirmos (verbozinho da moda esse, hein?) o verde exuberante, aquele friozinho gostoso e o canto dos pássaros nas árvores, mas nunca, nunca entenderemos a natureza como os índios a compreendem e a vivenciam.

Isso sem falar no senso de cooperação e partilha das aldeias indígenas, verdadeiros exemplos do que é o comunismo em sua essência: a comunhão de bens, valores e idéias.

Enfim, se tivéssemos mais da veia indígena em nossas ações e comportamento, certamente seríamos uma sociedade melhor, mais justa, mais igual, mais humana, menos egoísta, mais natural... Acho, sinceramente, que está faltando um pouco de índio em cada um de nós.

PS: Não poderia deixar de referenciar aqui minha ascendência indígena (estampada claramente na minha aparência física). Não tenho certeza da etnia, mas muito possivelmente minha ascendência é Kariri, da região sul do estado, no Cariri, onde nasci e cresci (nascido em Barbalha e crescido no Assaré). Se já tenho traços indígenas, meu avô Chico tinha muito mais: sujeito de poucos pêlos no corpo, da pele vermelha, do cabelo liso em formato de cuia e dos “zói” puxado. É!, tenho a quem puxar. 


quarta-feira, 18 de abril de 2012

Cotas raciais no Brasil: combatendo a desigualdade de cor



Artur Pires

A desigualdade racial no Brasil é abissal. Dependendo da pigmentação da pele, um brasileiro pode ter oportunidades bem diversas e contrastantes. O racismo, arraigado no seio da sociedade nacional desde a formação do povo brasileiro, exclui e marginaliza uma parcela significativa da população do país. É sob esse contexto que as políticas afirmativas despontam como uma necessidade premente.

Em uma sociedade como a brasileira, onde as faces do racismo se mostram das mais variadas formas e estão imiscuídas dentro das relações sociais, as cotas raciais se apresentam como um paliativo necessário. “Apesar das críticas contra a ação afirmativa, a experiência das últimas quatro décadas nos países que a implementaram não deixam dúvidas sobre as mudanças alcançadas6” (p. 32). A partir desses prévios conhecimentos acerca das políticas de afirmação em outros países, poderíamos criar nosso próprio sistema de cotas, fazendo um bom proveito das experiências acumuladas. O que a questão exige é o direito à escuta de grupos sociais marginalizados historicamente que querem agora fazer parte das decisões políticas, não apenas mais como meros espectadores. Esses atores sociais não estão querendo dividir racialmente a sociedade, mas se recusam a esquecer as marcas indeléveis da exclusão realizados há séculos5.

Dessa forma, as políticas de afirmação visam a oferecer aos grupos marginalizados um tratamento diferenciado para compensar as menores oportunidades devido à sua condição de discriminados6. Esse pensamento vai ao encontro da idéia que Guimarães4 tem das cotas: uma desigualdade que se propõe a anular outra desigualdade.  Não intervir na forma como a realidade está posta, através das políticas afirmativas, é favorecer injustamente grupos sociais que historicamente sempre tiveram privilégios e garantias consolidadas.

Tudo depende das oportunidades de cada um, ou melhor, do ponto de arrancada de cada um na grande corrida pela vida. Os “melhores”, os “vencedores”, serão aqueles que tiverem reunido a maior gama de oportunidades já ao nascer e ao longo da vida. Este, evidentemente, não seria o caso da população negra brasileira, a qual tem sido vitimada historicamente pela pobreza e pela discriminação racial inerentes ao círculo vicioso do racismo institucional. Assim, se quisermos contrapormo-nos ao racismo subjacente e invisível das nossas instituições, precisamos, em primeiro lugar, garantir a criação de oportunidades para os negros brasileiros, sem o que não lhes será possível vencer no cenário competitivo da sociedade moderna de livres e iguais perante a lei1 (p. 214 e 215).

Ou seja, no universo das possibilidades de acesso, já há uma desigualdade que deve ser considerada. “Daí a justificativa de uma política preferencial no sentido de uma discriminação positiva [...]6” (p. 34). O modernismo político “acostumou a tratar igualmente seres e grupos diferentes ou desiguais, em vez de tratá-los especificamente como desiguais6” (p. 36). Desse modo, as cotas para certos grupos sociais são nada mais do que políticas que se propõem a tentar equilibrar o quadro das garantias e vantagens sociais. 

Os críticos e refratários às cotas raciais nas universidades brasileiras, na maioria das vezes, lançam mão de argumentos que não visam a alterar o estado das coisas. Ademais, se negam a admitir o longo processo de exclusão do negro na sociedade brasileira. Outra argumentação contrária é a de que as cotas sociais seriam mais eficazes, pois atenderiam também aos brancos pobres. Não discordamos desse segundo argumento. Mas uma política não necessariamente anula a outra. As duas podem ser adotadas conjuntamente. Até porque num país onde os preconceitos e a discriminação racial não foram zerados, ou seja, onde os alunos brancos pobres e negros pobres ainda não são iguais, pois uns são discriminados uma vez pela condição socioeconômica e os outros são discriminados duas vezes pela condição racial e pela condição socioeconômica, as políticas ditas universais [...] não trariam as mudanças substanciais esperadas para a população negra6 [...] (p. 33 e 34).
 
 “Não vejo como tratar, falando de políticas públicas numa cultura e sociedade racista, igualmente os negros pobres e os brancos pobres, quando uns são duplamente discriminados e outros discriminados uma única vez6” (p. 36).

A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto se buscam outros caminhos. Se o Brasil, na sua genialidade racista, encontrar alternativas que não passam pelas cotas para não cometer injustiça contra brancos pobres – o que é uma crítica sensata – ótimo! Mas dizer simplesmente que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto, médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para [...] milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este esteja desmistificado6 (p. 42).

Um terceiro argumento lugar-comum dos críticos às cotas raciais é o de que estas vão galvanizar a discriminação contra os negros. Ora, não há essa possibilidade, posto que as cotas não têm como estimular os preconceitos raciais, uma vez que estes já se encontram arraigados na cultura e na psique coletiva do povo brasileiro. A função das cotas é outra - e muito bem demarcada: oportunizar condições a uma parcela da população que sempre se deparou com as portas fechadas para sua inserção e mobilidade social.

É importante deixar claro que somos todos brasileiros, mas de cores diferentes e se essas diferenças têm servido como critério para que profundas desigualdades sociais sejam mantidas em termos estruturais e reproduzidas em nosso cotidiano, são as desigualdades que devem ser combatidas, não as diferenças, essas só nos enriquecem8 (p. 49).

(Ilustração: Material do Coletivo Nacional da Juventude Negra - Enegrecer)

Em suma, a implantação das cotas para negros nas universidades – e também em outras searas da sociedade brasileira – como um programa político de abrangência nacional funcionaria, desse modo, como uma política de reparação a séculos de exclusão social. Essa é uma dívida histórica que o Brasil tem com sua população negra. “[...] A ação afirmativa corresponde, enfim, aquelas ações de natureza imediata que visam corrigir ou atenuar os efeitos de uma história de longo termo2” (p. 216). A “questão da implementação de cotas raciais é uma forma de política para a correção das desigualdades no Brasil8” (p. 49).

A aplicação de ações afirmativas visaria à igualdade no plano dos direitos entre grupo, e corresponderia a tratamentos preferenciais concedidos a indivíduos pertencentes a certos grupos (de raça ou gênero) precisamente para compensar a discriminação no passado, que termina ela mesma por ser instituidora das desigualdades do presente9.

Conclusões

Pensar em soluções e alternativas para exterminar a praga do racismo na sociedade brasileira é uma tarefa árdua e espinhosa. Muito devido ao fato de que essa visão racista do brasileiro está arraigada em sua identidade enquanto povo. O povo brasileiro é racista hoje por uma construção social maquiavelicamente engendrada séculos atrás. Na constituição de nossa sociedade, teorias racistas que atestavam o negro como inferior e propenso à submissão – mas também à violência - foram incorporadas às relações e comportamentos sociais para nunca mais saírem.

Hoje, ainda que quase ninguém se autodeclare racista, esse preconceito subsiste na psique coletiva das pessoas. O estudo realizado com crianças na Universidade Federal de Sergipe, que apresentamos no texto anterior, mostra o quão racista é a nossa sociedade, posto que até mesmo pequenos brasileiros de 5 a 8 anos já apresentam rejeição à figura do negro, mesmo sem terem o mínimo conhecimento sobre conceitos de “raça”, racismo, preconceito, discriminação etc. 

Considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo7 (p. 19).

Além dessas técnicas inovadoras e de uma linguagem capaz de imiscuir-se no imaginário e nas representações coletivas que as pessoas têm do racismo, faz-se de extrema importância “fortalecer a formação e reatualização de uma consciência negra, em cada país que carrega na sua história um passado assinalado pelo escravismo colonial2” (p. 217). Essa é “uma estratégia importante em um mundo onde o racismo, os preconceitos e a discriminação existem efetivamente2” (p. 217).

Mas o que vem a ser a “consciência negra”? O que esse conceito tem a nos dizer sobre a luta pela superação do racismo? Qual, de fato, a sua eficácia nessa contenda? Consciência negra é construir uma identidade negra em um mundo dentro do qual o racismo – outra construção – existe de modo explícito ou encoberto. É construir a identidade negra como diferença, e exigir que esta diferença seja percebida sem desigualdade. É dotar essa identidade de força política, de valor social, de pujança cultural2 (p. 221).

É dentro dessa visão de autoafirmação da “raça” negra com uma construção sociológica – e não mais biológica - que surge também a noção de identidade negra. É ela que vem fortalecendo a luta do movimento negro em todo o país.  O conceito de identidade negra vem trazendo em seu bojo a revalorização da cultura milenar negra, dos seus costumes, das suas origens. Esse resgate histórico-cultural da negritude tem contribuído decisivamente para cavar espaços de inserção sócio-políticos antes inimagináveis - vide a Lei 10.639, de 2003, que obriga todas as escolas brasileiras, de nível fundamental e médio, a adotar em seus currículos disciplinas que contemplem a cultura e a história afro-brasileira, para além dos clichês habituais.

[...] O suporte para esta “identidade negra” que vem se fortalecendo nas décadas recentes – para além de sua belíssima história em termos de realizações culturais e da tradição de suas lutas – é o fato que, passado um século, para muito além de suas diversidades internas, este imenso contingente humano é freqüentemente visto e tratado pelos poderes instituídos e dominantes, ainda que subliminarmente, como uma mesma coisa, como o não-branco, o seu “outro”, um contraponto com o qual se tem de conviver, o receptáculo de preconceitos que por vezes não podem ser contidos mas que também não devem ser explicitados. Assim, diante deste jogo de poderes e micropoderes que querem a contrapartida de uma resistência, e à parte uma rica diversidade interna a ser reconhecida, os diversos grupos que se assumem como portadores da negritude não deixam de se reconhecer nesse ‘eixo de equivalência comum2’ (p. 210).

Em suma, é imperativo somar a noção de identidade negra às novas linguagens e técnicas que visam a transformar o imaginário coletivo brasileiro. Juntas, essas alternativas podem arrostar o racismo da sociedade brasileira e promover um processo contra-hegemônico, aos moldes gramscianos*, que suplantaria as práticas de preconceito racial. Enquanto isso não ocorre, urge que medidas paliativas sejam tomadas no sentido de igualar as oportunidades às diversas etnias brasileiras. É nesse sentido que as políticas de ação afirmativas para negros são extremamente necessárias, uma vez que o país ainda tem um longo e pedregoso caminho a percorrer para equalizar seu imenso fosso racial. 

PS: Boa dica para quem quer se inteirar mais sobre a agenda negra no Brasil é consultar o Observatório da População Negra

____________
*. Para o filósofo italiano Antonio Gramsci, a hegemonia seria a direção moral e intelectual de uma sociedade, onde a dominação é auxiliada pela instauração do consenso. O poder de coesão, conectado ao consenso, constituiria o predomínio de uma visão social de mundo e de convívio social.  O espaço da hegemonia é a sociedade civil, portanto. Então, de acordo com Gramsci, a melhor estratégia para a construção de uma outra organização social seria a chamada guerra de posição, em que as classes subalternas disputariam a direção moral e intelectual da sociedade.  Às classes subalternas, se integrariam os intelectuais orgânicos, que seriam, pois, os ativistas que encampariam, junto àquelas classes, o fomento de uma nova visão de mundo, de uma nova cultura, que se oporia aos intelectuais organicamente ligados à classe dominante, ou seja, a luta contra-hegemônica se iniciaria.  

1. AZEVEDO, Célia Marinho de. Cota racial e Estado: Abolição do racismo ou direitos de raça? In: Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 213-239, jan./abr, 2004b. [http://www.scielo.br/pdf/%0D/cp/v34n121/a10n121.pdf]

2. BARROS, José D´Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, Vozes, 2009. 

3. _________. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

 

4. GUIMARÃES, A . S. A Desigualdade que anula a desigualdade: notas sobre a ação afirmativa no Brasil. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos. Brasília: Ministério da Justiça, 1996, p.233-242.


5. LEITE, Ilka Boaventura. Humanidades insurgentes: conflitos e criminalização dos quilombos. Paper, 2007.

 

6. MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas. In: Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 31-43. [http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70311216002.pdf].

 

7. _____. Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

 

8. OLIVEN, Arabela Campos. Ações afirmativas, relações raciais e política de cotas nas universidades: Uma comparação entre os Estados Unidos e o Brasil. In: Educação, ano XXX, n. 1 (61), Porto Alegre, p. 29-51, jan/abr 2007. [http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/539/375]

 

9. HASENBALG, C.; SILVA, N. Raça e oportunidades educacionais no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, n. 18, p.73-91, maio 1990.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Por que o racismo ainda persiste?

(Ilustração: Ares/Cuba, 2012)

Artur Pires

O racismo, do modo como o conhecemos hoje, é uma construção social relativamente recente na história do homem. Até a Idade Média, antes do período das Grandes Navegações, as principais formas de discriminação se davam por diferenças religiosas e políticas ou em relação à nacionalidade e à língua falada pelos indivíduos. Com a descoberta da África e, principalmente, a partir do tráfico negreiro para a América, os europeus usaram a ciência a favor do colonialismo exploratório para desenvolverem teorias de superioridade racial, baseadas em diferenças biológicas, que endossavam seus interesses comerciais e de dominação.

Foi nesse momento que surgiu a diferenciação pela cor - o racismo -, que não resistiu aos avanços nos campos biológico e antropológico da ciência, mas deixou marcas indeléveis nas sociedades que fizeram uso das teorias raciais para justificar a escravidão, como o Brasil. Isto porque “[...] o ‘racismo’ se constrói junto com a noção de ‘raça’. Mas, pior, o ‘racismo’ pode sobreviver à dissolução científica da noção de ‘raça’2” (p. 211), já que ele, assim como os demais preconceitos, é um produto da cultura na qual está inserido.  Dessa forma, o racismo “transformou-se em arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns sobre os outros4” (p. 18). Sendo assim, ele se adapta perspicazmente às condições de aceitabilidade exigidas pelos costumes e convenções sociais, manifestando-se às claras ou de maneira cortinada e simbólica, sendo parte constituinte da psique coletiva do conjunto da sociedade. Essa cultura de discriminação racial, embora tenha reflexos mais contundentes nas classes vulneráveis economicamente, “abarca indistintamente pobres, classe média e ricos em todas as sociedades racistas3” (p. 39). Dessa maneira, é o próprio “racismo que opera o processo social e cultural de racialização1” (p.220).

A ‘construção social da cor’ deu-se e dá-se de modo tão particularmente intenso no mundo moderno que todos – ‘negros’ e ‘brancos’, ou outras cores que se queira acrescentar - aprendem de um modo ou de outro a enxergar o mundo a partir desta e de outras diferenciações, as quais acabam se tornando, por isto mesmo, socialmente significativas em detrimento de diferenças que só aparecem como relevantes no âmbito individual (cor dos olhos, altura, desenho do rosto, espessura do corpo). [...] Tirando as diferenças sexuais e etárias, que se impõem naturalmente,existem dezenas de especialidades biológicas que não são percebidas ou valoradas socialmente, e outras que podem sê-lo. Por que as diferenças de pigmentação da pele são selecionadas socialmente como diferenças, inclusive motivando preconceitos e formação de identidades, e não as diferenças de tipos sanguíneos, por exemplo?2 (p 51 e 52).

O racismo está tão presente na cultura e no imaginário coletivo da sociedade brasileira que pesquisa desenvolvida pelo departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) com crianças de 5 a 8 anos comprovou essa face invisível do preconceito racial no Brasil. Os pequenos eram induzidos a desenhar uma criança branca e outra negra e depois deveriam classificar os desenhos, segundo critérios de riqueza, beleza, inteligência, proximidade e contato. O resultado foi um alto índice de racismo, com o desenho da criança negra sendo bastante rejeitado em todos os critérios de classificação. O estudo confirmou que a incorporação de atos racistas no comportamento social é introduzida de maneira velada pelo aprendizado das normas sociais e, desse modo, se manifesta na maioria das vezes de modo inconsciente, como no caso das crianças. Assim sendo, o racismo tem lugar cativo no inconsciente coletivo, que, sem perceber, transmite-o de uma geração a outra, tornando essa prática dificílima de ser exterminada.

Todavia, à parte essa construção social da “raça” negra a partir de conceitos biológicos e sua conseqüente imersão na alma do povo brasileiro, é importante verificar a construção sociológica positiva que a idéia de “raça” negra adquiriu, em diferentes momentos históricos, sempre como uma voz de enfrentamento às opressões, ao racismo e de autoafirmação do orgulho em pertencer àquela identidade racial:

Se a idéia de existência de ‘raças’, e particularmente de uma ‘raça negra’, teve um de seus começos mais sombrios na pena de cientistas e teólogos que instituíram a concepção racista para dar apoio a modos de exploração cuja mais cruel variação foi o escravismo colonial, por outro lado, em outro momento, a história da noção de ‘raça negra’ iluminou-se e tornou-se extremamente bela através de capítulos que incluem a resistência contra o escravismo, a participação dos próprios oprimidos na abolição da desigualdade que os oprimia, a organização de movimentos negros no mundo moderno, a luta contra preconceitos e discriminação, a conquista oficial de reconhecimento político, afora as riquíssimas realizações culturais que se concretizaram em algumas das mais belas criações artísticas, musicais, lúcidas e religiosas que algum dia puderam e poderão ser desfrutadas pela humanidade2 (p. 219 e 220).

Desse modo, “[...] a ciência nada tem ou pode opor ao seu emprego, porque esse conceito não foi construído em torno de pretensas bases biológicas, mas sim a partir de perspectivas assumidamente socioculturais2” (p. 220). A conceitualização sociológica da “raça” funciona, então, como um contraponto à sua concepção biológica. Assim, esse viés sociológico do conceito de “raça” atua de forma eficaz e extremamente benéfica para a estruturação e o fortalecimento de identidades sociais e culturais que funcionarão como formas de luta contra a desigualdade social ou como resistências contra opressões e preconceitos.

Portanto, em que pese sua contestação em termos de validade científica, o conceito de “raça” continuará a subsistir em função de sua possante força sociológica. Essa autoafirmação da “raça” negra cumpriu ou tem cumprido em certo momento da história – pós-colonialista e pós-escravista – o papel de agregar, em torno de ideais de coesão e de luta, grupos sociais que são ou um dia foram oprimidos socialmente, submetidos a desigualdades econômicas, educacionais e políticas, impedidos de se afirmarem como diferenças com plena liberdade e determinação2 (p.219).

No entanto, [...] permanece como questão polêmica a definição de qual seria o melhor caminho para conquistar o tão sonhado fim das desigualdades sociais ligadas à percepção da cor da pele: a afirmação das “identidades raciais” para lutar concomitantemente pela “igualdade entre raças”, ou simplesmente a diluição do conceito de raça de modo a extinguir  gradualmente a percepção social da cor?2 (p. 52).
 
Análise da população negra no Brasil

Apesar de constituírem mais da metade da população brasileira (IBGE, 2010)5, com 51% dos habitantes do Brasil, os negros são recorrentes na grande maioria dos indicadores negativos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Se o país fosse dividido pelas “raças” e pelo acesso destas às oportunidades, constataríamos um Brasil com padrões nórdicos de um lado – a face branca -, e outro de índices semelhantes aos países mais pobres da África – o pedaço negro.

Ainda que o Brasil tenha evoluído em IDH, melhorado a distribuição de renda, diminuído a taxa de analfabetismo, a população negra continua sendo a que menos tem acesso a estas recentes conquistas sociais, pois, segundo estudo de 2010 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 70% dos brasileiros situados na faixa de vulnerabilidade social e econômica são negros.

Mercado de trabalho
No mercado de trabalho, a desigualdade proporcionada pela cor da pele também salta aos olhos. Segundo o Relatório Global sobre Igualdade no Trabalho7, de 2011, estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a taxa de desemprego é bem maior entre negros.  Já outra pesquisa desenvolvida pelo Instituto Ethos, em 2010, mostra que quanto maior o nível hierárquico nas empresas no Brasil, menor a probabilidade de ter um negro no comando. No ano do levantamento, os negros representavam residuais 5% dos executivos e 13% dos gerentes nas 500 maiores empresas brasileiras.

Índices de violência
(Ilustração: Laerte)

Outro dado alarmante que recai com maior força sobre a população negra brasileira diz respeito aos indicadores de violência. A mortalidade de jovens negros entre 15 e 29 anos é três vezes maior do que entre jovens brancos. Segundo estudo do IPEA de 2011, intitulado Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira6, em 2001 e 2007 – anos pesquisados - a principal causa externa de morte na população negra foram os homicídios, responsáveis por aproximadamente 50% dos óbitos. O grau de vitimização da população negra é assustador: há uma probabilidade 103,4% maior de um negro ser vitimado do que um branco. Quando se analisa só a faixa etária dos jovens de 15 a 25 anos, essa probabilidade aumenta para 127,6%. Com esses números alarmantes, constata-se que a violência homicida no Brasil tem rosto e cor: jovem, negro, morador da periferia das grandes cidades.

Acesso à educação
No que diz respeito ao acesso à educação, a situação se mantém extremamente desigual. Segundo o IBGE (2010), 70% dos 14 milhões de analfabetos do país são negros. Hipoteticamente, se de repente, por um passe de mágica, os ensinos básico e fundamental melhorassem seus níveis para que os estudantes pudessem competir em igualdade de condições no vestibular com alunos de colégios particulares, os estudantes negros levariam mais de três décadas para atingir o atual (grifo nosso) nível dos alunos brancos3. No ensino superior, o quadro é também deveras excludente. De acordo com pesquisa de 2011 da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) sobre o perfil dos estudantes de graduação no Brasil, constatou-se que apenas 8,72% dos estudantes são pretos, ao passo que os brancos representam 53,9% desse universo, e os pardos, 32%.

Como se percebe, a questão racial naturaliza e contribui para a desigualdade no Brasil. Há um claro desequilíbrio de oportunidades de acesso às diversas esferas da sociedade. Todos os indicadores sociais apontam para um deletério quadro de vulnerabilidade social da população negra brasileira, seja no mercado de trabalho, no acesso à moradia urbana, à terra, à educação e à justiça.

A mobilidade social do negro no Brasil - ou seja, sua ascensão social em relação ao conjunto da sociedade - continua em patamares residuais. O que se conclui dessa realidade é que, apesar dos avanços sociais obtidos na última década, a situação da população negra no Brasil continua extremamente vulnerável. Esse quadro tão-somente reforça a necessidade de implantação de políticas públicas direcionadas para a população negra, que visem a alcançar uma maior equanimidade de oportunidades.  As políticas afirmativas, principalmente a de cotas, para a população negra no Brasil são mais do que necessárias, urgem!

No último texto da série sobre a questão racial, se tratará especificamente sobre a necessidade de implantação e expansão das políticas de cotas raciais no país.

1. AZEVEDO, Célia Marinho de. Cota racial e Estado: Abolição do racismo ou direitos de raça? In: Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 213-239, jan./abr, 2004b. [http://www.scielo.br/pdf/%0D/cp/v34n121/a10n121.pdf]

2. BARROS, José D´Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, Vozes, 2009. 

 

3. MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas. In: Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 31-43. [http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70311216002.pdf].

 

4. _____. Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.


5. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico: resultados preliminares - dados referentes ao Brasil, fornecidos em meio eletrônico, 2010.

6. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Dinâmica demográfica da população negra brasileira. Comunicados do IPEA, n. 91. IPEA, maio, 2011.

7. OIT - Organização Internacional do Trabalho. Igualdade no trabalho: um desafio contínuo. Relatório Global no quadro do seguimento da Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Brasília: Secretaria Internacional do Trabalho, 2011.

domingo, 15 de abril de 2012

O poder negro sai às ruas

Artur Pires

Para entender o movimento negro atual é importante recorrer ao movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 1960, berço e estopim para as lutas mais atuais da população negra em todo o mundo. A partir dele, movimentos de contestação por direitos para os negros explodiram em todo o mundo. O movimento negro norte-americano foi base e parâmetro para todos os outros que surgiram no mundo na efervescente década de 1960: o movimento feminista, o movimento hippie, a contracultura... “No mundo inteiro, as pessoas que defendiam causas queriam imitar o movimento dos direitos civis1” (p. 121).

A porção Sul dos Estados Unidos, que resistiu até onde pôde na sua política escravocrata e racista, nunca considerou os negros como cidadãos plenos dos mesmos direitos civis dos demais habitantes. Para se ter uma idéia do quadro social à época, pouco tempo após o fim da escravidão, era fundada, no estado do Tennessee, sul dos Estados Unidos, em 1865, a Ku Klux Klan, organização radical que defendia a supremacia branca e se caracterizou por métodos altamente violentos, não hesitando em matar negros em nome dessa alegada superioridade racial. Seu objetivo era impedir a integração social dos negros recém-libertos, como, por exemplo, impedi-los de adquirir terras ou votar.

Por quase um século após o fim do escravismo nos Estados Unidos, os negros continuaram à margem dos processos sociais e cidadãos do País, principalmente no Sul. Ou seja, os negros tinham sido libertados das amarras do escravismo, mas não se livraram da opressão, seja de ordem econômica ou social. A parcela negra da população estadunidense foi escandalosamente apartada da vida em sociedade, segregada da maneira mais vil, escanteada a uma posição de desprezo e irrelevância dentro da hierarquia social americana. A escravidão havia ido embora, mas tinha deixado como lembrança um aviltante racismo que continuava a segregar e a tolher a liberdade da população negra.

Ainda na década de 1950, marcadamente na parte sul dos Estados Unidos, a segregação racial imperava. Os bebedouros públicos eram divididos: os negros não podiam beber água no mesmo local que os brancos. A segregação era tão intensa que negros e brancos praticamente não se misturavam na sociedade americana, principalmente no Sul, até meados do século XX. Havia as escolas “normais” - e as escolas para negros. Havia os hospitais para os americanos “comuns” – e outros só para negros. Na grande maioria das universidades do Sul não se aceitava estudantes negros. Estes também não tinham direito ao voto, ou seja, não exerciam qualquer representatividade de cidadania.

Ademais, nos ônibus, os assentos da frente eram destinados aos brancos; aos negros, a parte de trás do veículo. Ainda assim, se algum branco tivesse sem assento, um negro deveria levantar-se e dar seu lugar. As praças, restaurantes e demais locais de convívio social que se localizavam nos centros urbanos eram exclusividade de brancos. Os negros que se contentassem em acomodar-se às periferias e subúrbios das cidades. Tudo isso era legitimado por lei. Ser racista fazia parte do dia-a-dia da sociedade americana e a Justiça endossava tais práticas.

O grito de igualdade

Certo dia, uma negra, Rosa Parks, costureira na cidade de Montgomery, no racista Alabama, sul dos Estados Unidos, resolveu afrontar as leis segregacionistas de seu estado. Parks saía de um dia estafante de trabalho e pegou um ônibus de volta para casa. Tomou assento. No meio da viagem, intimada a dar seu lugar a um passageiro branco, negou-se, corajosamente. Foi presa, julgada e condenada. A condenação da costureira foi o rastilho de pólvora que faltava para incendiar uma nação inteira na luta pelas conquistas dos direitos civis para os negros.

Como efeito direto do incidente com Parks, as lideranças negras da cidade – capitaneadas por um ainda pouco conhecido pastor protestante chamado Martin Luther King - contando com o apoio de grupos de cidadãos brancos, convocou um boicote geral ao transporte público na cidade, que durou cerca de 13 meses. Considerando que a maioria esmagadora dos usuários eram negros, que tinham aderido ao boicote, o sistema de transporte público daquele município americano quase veio à falência. A negação dos negros ao transporte na localidade só terminou quando a legislação que separava brancos e negros de Montgomery foi extinta. A centelha que faiscou inicialmente no Alabama, rápida e ferozmente se espalhou por todo o país, provocando uma combustão explosiva de sentimento e luta em torno dos direitos civis.

Dessa forma, a década de 60, principalmente em terras norte-americanas, foi marcada por uma intensa luta da sociedade negra por direitos civis. Dessa luta, brotaram como frutos a Lei dos Direitos Civis, em 1964, e a Lei do Direito ao Voto, em 1965.

Durante esse período histórico, surgiram expressões e apologias aos negros que ganharam as ruas. Stokely Carmichael, “um dos organizadores do grupo pelos direitos civis notavelmente enérgico [...] inventou o nome Panteras Negras, logo seguido pela expressão Poder Negro
1” (p. 25). O maior ícone e ideólogo dos Panteras Negras, partido radicalmente defensor do orgulho negro, era Malcolm X, ativista negro, que fora morto alvejado por vários tiros, em 1965, durante comício no Harlem, bairro de Nova Iorque de maioria negra.

Os Panteras Negras

Vale ressaltar ainda que dentro do próprio movimento negro não havia unidade. Duas correntes conflitantes tentavam conquistar a sociedade média norte-americana. “Era um momento de grande luta dentro da comunidade negra, com aqueles que eram antigamente pretos agora esforçando-se para definir o novo negro
1” (p. 157).

Os negros do norte eram diferentes dos negros do sul. Enquanto os adeptos em sua maioria sulistas de Martin Luther King estudavam Mohandas Gandhi e sua campanha não-violenta contra os ingleses, Stokely Carmichael, que crescera na cidade de Nova York, passou a se interessar por rebeldes violentos, como os Mau Mau, que se insurgiram contra os ingleses no Quênia. [...] O pessoal de King entoava: ‘Liberdade Agora!’ O pessoal de Carmichael entoava: ‘Poder Negro!
1’ (p. 25).

Essa divisão, em muitas ocasiões, serviu mais para atrapalhar do que para ajudar os negros na sua busca por mais direitos civis e igualdade de tratamento. Muitos dos grandes nomes da cultura negra eram constantemente atacados por setores da comunidade negra. “Novos heróis negros eram criados e antigos derrubados a cada dia
1” (p. 158). Um braço do movimento pelos direitos civis, os Panteras Negras, que em princípio assustaram a esquerda branca americana com sua posição ideológico-radical de, se necessário, pegar em armas para fazer justiça com as próprias mãos, estavam sempre em confronto com a polícia, e, portanto, “eram vistos, cada vez mais, como mártires1” (p. 157).

Na plataforma do Black Panther Party, encontravam-se propostas vistas como radicais pela corrente pacifista, mas que do ponto de vista ideológico buscavam o rompimento total com o estado das coisas, como dispensar todos os negros do serviço militar, libertar todos os negros da prisão, indenizar todas as famílias negras pelas agruras da escravidão e do racismo e exigir que todos os futuros julgamentos de negros fossem realizados com um júri integrado apenas por negros. Não tiveram nenhumas destas suas reivindicações atendidas, mas, diferentemente da corrente contemporizadora de Luther King, ousavam e eram bem mais audazes.

O movimento pelos direitos civis, que já houvera recebido um golpe duríssimo com o assassinato de Malcolm X, em 1965, sofreu outro grande abalo com a morte de um de seus principais líderes, Martin Luther King, três anos depois, em 4 de abril de 1968. Assim como Malcolm X, Luther King também foi assassinado, dessa feita em Memphis, no Tennessee, onde estava em apoio a uma greve de coletores de lixo. Todavia, ao contrário do que se esperava, logo após o assassinato de King houve um período de recrudescimento da luta: “Quando se espalhou a notícia de que King fora assassinado por um prisioneiro branco que fugira [...] a violência se espalhou nas áreas negras de 120 cidades americanas e foram noticiados 40 motins
1”(p. 161).

Em suma, apesar das enormes divergências internas, o movimento pelos direitos civis foi base e exemplo para todos os outros movimentos de contestação que surgiram nos Estados Unidos e no mundo naqueles tempos e tem reflexos percebidos até os dias de hoje na lutas e reivindicações da população negra em todo o mundo.

1. KURLANSKY, Mark. 1968 – O ano que abalou o mundo. São Paulo: José Olympio, 2005.