quarta-feira, 4 de abril de 2012

Desconstruindo o mito do paraíso racial brasileiro

O mito da democracia racial nega a realidade objetiva, na qual brancos e negros não têm as mesmas oportunidades, seus papéis sociais estão pré-determinados (Foto: Novela Escrava Isaura, Rede Globo (1976)

*Artur Pires

Não seria exagero afirmar que o mito do paraíso racial - que Gilberto Freyre, um dos nossos mais renomados sociólogos, ajudou a sustentar em seu Casa Grande & Senzala (1933) com a tese de que o Brasil era “um país excepcional por ter sido capaz de engendrar a mais perfeita fórmula de equilíbrio de todos aqueles antagonismos mediante a mistura física e cultural de diversos povos desde tempos coloniais1” - contribui até os dias de hoje para negar à maioria da população brasileira uma igualdade de oportunidades.

A imagem da ausência de preconceitos e da alegada harmonia racial no Brasil permitiu o prolongamento da escravidão no País. Não à toa o Brasil foi o último país das Américas a libertar seus negros. Dentro do contexto de incentivo à imigração, “[...] a imagem da ausência de preconceitos assumia a condição de um recado tranquilizador aos europeus2”, que vinham em massa trabalhar em terras brasileiras.

Em um primeiro momento, o mito do paraíso racial brasileiro contribuiu para afastar de vez a idéia de abolição, uma vez que estas idéias serviam de combate à propaganda abolicionista e também para não permitir que as autoridades políticas do país cruzassem os braços diante das ameaças à propriedade de escravos. Em um segundo momento, “[...] imigrantistas e abolicionistas convergiram para a imagem de uma sociedade escravista sem racismo, onde o negro e o mestiço, uma vez livres, viveriam em pé de igualdade com o branco, sem restrições legais e nos costumes2”.

Em uma terceira etapa desse processo de construção do mito, os próprios abolicionistas, endossando o que já diziam os emancipacionistas e imigrantistas, e fazendo papel de advogados do diabo - no caso, os escravocratas -, se encarregaram de dar vazão à idéia de um país racialmente sem conflitos. “A imagem harmoniosa de um país sem preconceitos raciais emergiu da pena de um dos mais importantes dirigentes abolicionistas, o pernambucano Joaquim Nabuco2”.

Por serem simpáticos às propostas imigrantistas ou simplesmente por se preocuparem em manter a direção e o controle do movimento abolicionista para assegurar a paz e a continuidade dos interesses capitalistas, o fato é que os abolicionistas contribuíram grandemente para produzir nesta época a imagem do paraíso racial brasileiro2.

Essa hipocrisia em forma de mito percorreu todo o Brasil Colônia, adentrou o períodos regencial e imperial, continuou na fase republicana e ainda nos dias de hoje o imaginário coletivo da sociedade nacional tem a visão encoberta pelo mito da democracia racial brasileira, acreditando que no Brasil não há racismo, que somos um país onde todos têm direitos e oportunidades iguais. Essa maneira deturpada de enxergar a realidade objetiva traz desdobramentos sobremaneira negativos para a população negra do país3.

O mito da democracia racial é uma grande falácia sustentada pela elite que tem medo da “onda negra2”, apoiada por grande parte da burguesia e por demais setores conservadores da sociedade, com o único objetivo de manter o estado das coisas do jeitinho como está, ou seja, com a população negra brasileira excluída e negligenciada dos processos sociais, educacionais e políticos do país.  Afinal, alegam os defensores do mito, “o que os negros querem se metendo onde não os cabe? Que se contentem com a cozinha e o jardim para trabalhar e a periferia para morar!”.

Em suma, o mito do paraíso racial brasileiro, infelizmente reforçado pelo pensador Gilberto Freyre e sustentado pela elite conservadora, foi uma das “criações” mais prejudiciais, em toda a história brasileira, à luta e ao combate contra o racismo, posto que, a partir do pressuposto de que não há divisão racial no país, não se atacam as raízes e a espinha dorsal do preconceito de “raça”. 

1. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1998.

2. AZEVEDO, Célia Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo, Annablume, 2004.

 

3. MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas. In: Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 31-43. [http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70311216002.pdf]. 

2 comentários:

  1. Qualquer dia trocaremos ideias, minhas recentes pesquisas tem como mote o negro e a publicidade, tratando de questões como estigma,reducionismo e invisibilização. Já leu a Negação do Brasil? Joel Zito Araújo, vale a pena.
    Abraços Artur! Power to the people!

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    1. Valeu, mermão.

      Estou sempre à disposição pra gente trocar essas idéias. A tua pesquisa tem um mote interessante. Dá pra trabalhar essa questão de uma forma bem crítica, contundente.

      Já tinha ouvido falar no livro, mas agora anotei bem direitinho nome e autor. Vai ficar entre os próximos a serem lidos.

      Lógico, todo o poder para o povo! Falando nisso, quando tiver um tempinho, dá uma lida nessa postagem também: http://impressoesmundanas.blogspot.com.br/2012/07/o-dia-em-que-hegemonia-mudara-de-lado_19.html

      Abraços mermão!

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