O papel de resistência e luta do negro foi imprescindível no processo de abolição (Ilustração: autor desconhecido)
Artur Pires
Artur Pires
Como visto anteriormente, por um longo período, a historiografia tradicional convencionou-se a dar os louros do fim da abolição aos abolicionistas, aos políticos que compunham o Parlamento nacional à época e a uma monarquia simpática à abolição. O papel crucial do negro em todo esse processo de rompimento era preconceituosamente esquecido. Ou seja, essa visão negava “[...] ao negro a condição de sujeito da história, encarando-a tão-somente como objeto a ser resgatado das trevas da escravidão pelos verdadeiros sujeitos daquele momento histórico, os abolicionistas2”. (p. 188).
Os próprios abolicionistas percebiam os negros como limitados mentalmente, portanto, não capazes “de se expressar na primeira pessoa do singular1” (p. 144). Para eles, o escravo, devido às suas características raciais, que o tornavam um ente passivo e isolado, não tinha capacidade intelectual de alcançar por si só a consciência de sua situação de oprimido e explorado, em função de sua condição estrutural. “Dada, portanto, a passividade e o colaboracionismo dos negros, contaminados pela escravidão, cabia aos brancos de sentimentos puros, os abolicionistas, libertar a raça negra2” (p.193). A idéia dominante era a de que o negro, “apesar de toda sua rebeldia, estava impossibilitado de conferir um sentido político às suas ações, dadas as próprias condições objetivas de um modo de produção que os reduziria irremediavelmente à alienação ou à incapacidade de assumir por si sós uma consciência de classe2” (p. 151). Visão mais racista impossível!
No entanto, após décadas dessa visão tradicionalista da História, que supervalorizou o papel das elites político-econômicas no processo de abolição, uma corrente relativamente nova da História Social tem se empenhado em dar o devido destaque ao protagonismo negro no rompimento do modelo escravocrata.
De fato, o movimento abolicionista não teria obtido êxito não fosse a resistência escrava. A idéia do negro passivo, submisso e grato ao seu senhor não passava de um grande desconhecimento que advinha do distanciamento material, moral e cultural da elite com o escravo, que a impedia de perceber o cotidiano dos negros e entender a fundo suas relações sociais e culturais. Provavelmente, por isso, “o que hoje se reconhece como formas de resistência, naquela época, mesmo entre as mentes mais humanitárias, passava por desordem, desenfreamento, paixões soltas e criminosas2” (p. 152).
Desde os primeiros anos do tráfico negreiro, ainda em meados do século XVI, os quilombos, as fugas em massa, os assaltos às fazendas, as revoltas individuais e coletivas e as tentativas de insurreições fizeram parte de todo o arcabouço de resistência que compreendia o comportamento do negro dentro do sistema escravista.
O Quilombo dos Palmares, que se formou ainda no século XVI (1597), na serra da Barriga, na então capitania de Pernambuco, durou quase um século, até 1694, e chegou a reunir, no seu auge, mais de 20 mil escravos fugidos, é um claro exemplo da insubmissão negra. “[...] A destruição sistemática dos quilombos não impedia a formação de outros, pois a matança dos quilombos só fazia aumentar a ‘justa cólera’ dos negros que se lançavam sobre as fazendas dos brancos, pondo fogo a tudo e seduzindo os outros escravos!2” (p. 38). Na verdade, em nenhum momento do sistema escravista, no Brasil ou em qualquer parte da América, os negros deixaram de lutar, sempre movidos por sentimentos de independência.
Não obstante a insubordinação escrava ter sido uma constante em todo o período escravista brasileiro, a tarefa de pôr um fim ao regime escravista brasileiro não era tão simples, uma vez que as bases e as construções sociais que sustentavam o modelo escravocrata estavam entranhadas no seio da sociedade nacional, por assim dizer, na psique coletiva do tecido social brasileiro. “[...] A escravidão, compreendida como sistema gerador e mantenedor de desigualdades, estaria constituída não apenas de uma base material, social e política, mas também de uma dimensão imaginária [...] de um ‘espírito’ que ela corresponderia3” (p. 175 e 176).
Entretanto, com o passar dos séculos e a permanência da escravidão, a resistência negra foi tornando-se ainda mais pujante e passou a se fazer presente “cada vez mais no próprio lugar de trabalho, muito mais do que fora dele, tal como nas tradicionais fugas e quilombos2” (p. 155 e 156). Nas décadas que antecederam a abolição da escravatura, a população negra dá sinais cada vez maiores de luta por uma libertação coletiva e de construção efetiva e decisiva de uma consciência negra. Assim, “[...] a conquista da liberdade passa a ser encarada como uma questão de luta para extinção desta desigualdade radical que é a escravidão3” (p. 183).
Nos últimos anos antes da assinatura da Lei Áurea, os escravos empreendiam revoltas de maior relevo, posto que contavam com um forte apoio popular e com a propaganda abolicionista totalmente favorável à sua causa. “À medida que cresciam as fugas em massa das fazendas, sobretudo a partir dos últimos meses de 1887, radicalizava-se o movimento abolicionista nas cidades2” (p. 174). “O fim da escravidão tornou-se um fato através do movimento do ‘não quero’ dos escravos, com centenas deles simplesmente se retirando das fazendas ao final de 1887 e início de 18881” (p. 201).
Em 1888, pouco antes da abolição, os escravos já não mais fugiam, “mas simplesmente se retiravam das fazendas, enquanto os fazendeiros viam-nos partir, impotentes, ou então, na falta de mão-de-obra que os substituíssem na próxima colheita, faziam-lhes sucessivas ofertas, até reconhecer seu direito ao salário em troca de trabalho2” (p. 179). Dada a realidade objetiva à época, constata-se que o regime escravista começou a ruir devido às suas próprias contradições ou devido à sua irracionalidade econômica. Em 13 de maio de 1888, os políticos dos três partidos – Liberal, Conservador e Republicano – convergiram em um consenso quase absoluto e votaram a Lei da Abolição, depois assinada pela Princesa Isabel. Estava decretado o fim da escravidão no Brasil.
Todavia, nenhuma mudança radical foi percebida. Os negros, agora libertos, continuaram excluídos do processo social do país, uma vez que eram preteridos pelo mercado enquanto força de trabalho, que dava preferência aos imigrantes. Os escravos e descendentes saíram espoliados da escravidão, despreparados para o trabalho livre, “incapazes [...] de se adequar aos novos padrões contratuais e esquemas racionalizadores e modernizantes da grande produção agrícola e industrial, tornando-se doravante marginais por força da lógica inevitável do progresso capitalista2” (p. 18). Já que não era mais possível segregar através da escravidão, tinha início, pois, o fenômeno de marginalização e exclusão social do negro livre, processo que perdura até os dias de hoje.
1. AZEVEDO, Célia Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo, Annablume, 2003.
2. _____. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. São Paulo, Annablume, 2004a.
3. BARROS, José D´Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, Vozes, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
E aí? O Impressões Mundanas quer saber o que você pensa. Fique à vontade para se expressar.