(Ilustração: Ares/Cuba, 2012)
Artur Pires
O racismo, do modo como o conhecemos hoje, é uma construção social relativamente recente na história do homem. Até a Idade Média, antes do período das Grandes Navegações, as principais formas de discriminação se davam por diferenças religiosas e políticas ou em relação à nacionalidade e à língua falada pelos indivíduos. Com a descoberta da África e, principalmente, a partir do tráfico negreiro para a América, os europeus usaram a ciência a favor do colonialismo exploratório para desenvolverem teorias de superioridade racial, baseadas em diferenças biológicas, que endossavam seus interesses comerciais e de dominação.
Foi nesse momento que surgiu a diferenciação pela cor - o racismo -, que não resistiu aos avanços nos campos biológico e antropológico da ciência, mas deixou marcas indeléveis nas sociedades que fizeram uso das teorias raciais para justificar a escravidão, como o Brasil. Isto porque “[...] o ‘racismo’ se constrói junto com a noção de ‘raça’. Mas, pior, o ‘racismo’ pode sobreviver à dissolução científica da noção de ‘raça’2” (p. 211), já que ele, assim como os demais preconceitos, é um produto da cultura na qual está inserido. Dessa forma, o racismo “transformou-se em arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns sobre os outros4” (p. 18). Sendo assim, ele se adapta perspicazmente às condições de aceitabilidade exigidas pelos costumes e convenções sociais, manifestando-se às claras ou de maneira cortinada e simbólica, sendo parte constituinte da psique coletiva do conjunto da sociedade. Essa cultura de discriminação racial, embora tenha reflexos mais contundentes nas classes vulneráveis economicamente, “abarca indistintamente pobres, classe média e ricos em todas as sociedades racistas3” (p. 39). Dessa maneira, é o próprio “racismo que opera o processo social e cultural de racialização1” (p.220).
A ‘construção social da cor’ deu-se e dá-se de modo tão particularmente intenso no mundo moderno que todos – ‘negros’ e ‘brancos’, ou outras cores que se queira acrescentar - aprendem de um modo ou de outro a enxergar o mundo a partir desta e de outras diferenciações, as quais acabam se tornando, por isto mesmo, socialmente significativas em detrimento de diferenças que só aparecem como relevantes no âmbito individual (cor dos olhos, altura, desenho do rosto, espessura do corpo). [...] Tirando as diferenças sexuais e etárias, que se impõem naturalmente,existem dezenas de especialidades biológicas que não são percebidas ou valoradas socialmente, e outras que podem sê-lo. Por que as diferenças de pigmentação da pele são selecionadas socialmente como diferenças, inclusive motivando preconceitos e formação de identidades, e não as diferenças de tipos sanguíneos, por exemplo?2 (p 51 e 52).
O racismo está tão presente na cultura e no imaginário coletivo da sociedade brasileira que pesquisa desenvolvida pelo departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS) com crianças de 5 a 8 anos comprovou essa face invisível do preconceito racial no Brasil. Os pequenos eram induzidos a desenhar uma criança branca e outra negra e depois deveriam classificar os desenhos, segundo critérios de riqueza, beleza, inteligência, proximidade e contato. O resultado foi um alto índice de racismo, com o desenho da criança negra sendo bastante rejeitado em todos os critérios de classificação. O estudo confirmou que a incorporação de atos racistas no comportamento social é introduzida de maneira velada pelo aprendizado das normas sociais e, desse modo, se manifesta na maioria das vezes de modo inconsciente, como no caso das crianças. Assim sendo, o racismo tem lugar cativo no inconsciente coletivo, que, sem perceber, transmite-o de uma geração a outra, tornando essa prática dificílima de ser exterminada.
Todavia, à parte essa construção social da “raça” negra a partir de conceitos biológicos e sua conseqüente imersão na alma do povo brasileiro, é importante verificar a construção sociológica positiva que a idéia de “raça” negra adquiriu, em diferentes momentos históricos, sempre como uma voz de enfrentamento às opressões, ao racismo e de autoafirmação do orgulho em pertencer àquela identidade racial:
Se a idéia de existência de ‘raças’, e particularmente de uma ‘raça negra’, teve um de seus começos mais sombrios na pena de cientistas e teólogos que instituíram a concepção racista para dar apoio a modos de exploração cuja mais cruel variação foi o escravismo colonial, por outro lado, em outro momento, a história da noção de ‘raça negra’ iluminou-se e tornou-se extremamente bela através de capítulos que incluem a resistência contra o escravismo, a participação dos próprios oprimidos na abolição da desigualdade que os oprimia, a organização de movimentos negros no mundo moderno, a luta contra preconceitos e discriminação, a conquista oficial de reconhecimento político, afora as riquíssimas realizações culturais que se concretizaram em algumas das mais belas criações artísticas, musicais, lúcidas e religiosas que algum dia puderam e poderão ser desfrutadas pela humanidade2 (p. 219 e 220).
Desse modo, “[...] a ciência nada tem ou pode opor ao seu emprego, porque esse conceito não foi construído em torno de pretensas bases biológicas, mas sim a partir de perspectivas assumidamente socioculturais2” (p. 220). A conceitualização sociológica da “raça” funciona, então, como um contraponto à sua concepção biológica. Assim, esse viés sociológico do conceito de “raça” atua de forma eficaz e extremamente benéfica para a estruturação e o fortalecimento de identidades sociais e culturais que funcionarão como formas de luta contra a desigualdade social ou como resistências contra opressões e preconceitos.
Portanto, em que pese sua contestação em termos de validade científica, o conceito de “raça” continuará a subsistir em função de sua possante força sociológica. Essa autoafirmação da “raça” negra cumpriu ou tem cumprido em certo momento da história – pós-colonialista e pós-escravista – o papel de agregar, em torno de ideais de coesão e de luta, grupos sociais que são ou um dia foram oprimidos socialmente, submetidos a desigualdades econômicas, educacionais e políticas, impedidos de se afirmarem como diferenças com plena liberdade e determinação2 (p.219).
No entanto, [...] permanece como questão polêmica a definição de qual seria o melhor caminho para conquistar o tão sonhado fim das desigualdades sociais ligadas à percepção da cor da pele: a afirmação das “identidades raciais” para lutar concomitantemente pela “igualdade entre raças”, ou simplesmente a diluição do conceito de raça de modo a extinguir gradualmente a percepção social da cor?2 (p. 52).
Análise da população negra no Brasil
Apesar de constituírem mais da metade da população brasileira (IBGE, 2010)5, com 51% dos habitantes do Brasil, os negros são recorrentes na grande maioria dos indicadores negativos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Se o país fosse dividido pelas “raças” e pelo acesso destas às oportunidades, constataríamos um Brasil com padrões nórdicos de um lado – a face branca -, e outro de índices semelhantes aos países mais pobres da África – o pedaço negro.
Ainda que o Brasil tenha evoluído em IDH, melhorado a distribuição de renda, diminuído a taxa de analfabetismo, a população negra continua sendo a que menos tem acesso a estas recentes conquistas sociais, pois, segundo estudo de 2010 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 70% dos brasileiros situados na faixa de vulnerabilidade social e econômica são negros.
Mercado de trabalho
No mercado de trabalho, a desigualdade proporcionada pela cor da pele também salta aos olhos. Segundo o Relatório Global sobre Igualdade no Trabalho7, de 2011, estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a taxa de desemprego é bem maior entre negros. Já outra pesquisa desenvolvida pelo Instituto Ethos, em 2010, mostra que quanto maior o nível hierárquico nas empresas no Brasil, menor a probabilidade de ter um negro no comando. No ano do levantamento, os negros representavam residuais 5% dos executivos e 13% dos gerentes nas 500 maiores empresas brasileiras.
Índices de violência
(Ilustração: Laerte)
Outro dado alarmante que recai com maior força sobre a população negra brasileira diz respeito aos indicadores de violência. A mortalidade de jovens negros entre 15 e 29 anos é três vezes maior do que entre jovens brancos. Segundo estudo do IPEA de 2011, intitulado Dinâmica Demográfica da População Negra Brasileira6, em 2001 e 2007 – anos pesquisados - a principal causa externa de morte na população negra foram os homicídios, responsáveis por aproximadamente 50% dos óbitos. O grau de vitimização da população negra é assustador: há uma probabilidade 103,4% maior de um negro ser vitimado do que um branco. Quando se analisa só a faixa etária dos jovens de 15 a 25 anos, essa probabilidade aumenta para 127,6%. Com esses números alarmantes, constata-se que a violência homicida no Brasil tem rosto e cor: jovem, negro, morador da periferia das grandes cidades.
Acesso à educação
No que diz respeito ao acesso à educação, a situação se mantém extremamente desigual. Segundo o IBGE (2010), 70% dos 14 milhões de analfabetos do país são negros. Hipoteticamente, se de repente, por um passe de mágica, os ensinos básico e fundamental melhorassem seus níveis para que os estudantes pudessem competir em igualdade de condições no vestibular com alunos de colégios particulares, os estudantes negros levariam mais de três décadas para atingir o atual (grifo nosso) nível dos alunos brancos3. No ensino superior, o quadro é também deveras excludente. De acordo com pesquisa de 2011 da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) sobre o perfil dos estudantes de graduação no Brasil, constatou-se que apenas 8,72% dos estudantes são pretos, ao passo que os brancos representam 53,9% desse universo, e os pardos, 32%.
Como se percebe, a questão racial naturaliza e contribui para a desigualdade no Brasil. Há um claro desequilíbrio de oportunidades de acesso às diversas esferas da sociedade. Todos os indicadores sociais apontam para um deletério quadro de vulnerabilidade social da população negra brasileira, seja no mercado de trabalho, no acesso à moradia urbana, à terra, à educação e à justiça.
A mobilidade social do negro no Brasil - ou seja, sua ascensão social em relação ao conjunto da sociedade - continua em patamares residuais. O que se conclui dessa realidade é que, apesar dos avanços sociais obtidos na última década, a situação da população negra no Brasil continua extremamente vulnerável. Esse quadro tão-somente reforça a necessidade de implantação de políticas públicas direcionadas para a população negra, que visem a alcançar uma maior equanimidade de oportunidades. As políticas afirmativas, principalmente a de cotas, para a população negra no Brasil são mais do que necessárias, urgem!
No último texto da série sobre a questão racial, se tratará especificamente sobre a necessidade de implantação e expansão das políticas de cotas raciais no país.
1. AZEVEDO, Célia Marinho de. Cota racial e Estado: Abolição do racismo ou direitos de raça? In: Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 213-239, jan./abr, 2004b. [http://www.scielo.br/pdf/%0D/cp/v34n121/a10n121.pdf]
2. BARROS, José D´Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade brasileira. Petrópolis, Vozes, 2009.
3. MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas. In: Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 31-43. [http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70311216002.pdf].
4. _____. Superando o Racismo na escola. 2ª edição revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
5. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico: resultados preliminares - dados referentes ao Brasil, fornecidos em meio eletrônico, 2010.
6. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Dinâmica demográfica da população negra brasileira. Comunicados do IPEA, n. 91. IPEA, maio, 2011.
7. OIT - Organização Internacional do Trabalho. Igualdade no trabalho: um desafio contínuo. Relatório Global no quadro do seguimento da Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Brasília: Secretaria Internacional do Trabalho, 2011.
ola!
ResponderExcluiradorei sua abordagem sobre o tema!
posso utiliza-lo para leitura complementar?
Claro, Thamires. Sem problemas. Pode utilizar sim. Só peço para que dê os devidos créditos (informar o blog, autor, essas coisas, ok?).
ExcluirComo você ficou sabendo texto desse? Alguém te indicou? Abraço e obrigado pela leitura!
Ótimo texto!! Completíssimo! Triste é saber que este texto foi escrito em 2012 e os números não mudaram nadinha.
ResponderExcluirValeu pela leitura Natalia! Realmente, pouco mudou de lá para cá!
ExcluirAgora estamos escrevendo no www.revistaberro.com
Acompanha a gente lá!