(Ilustração: Capa da 2ª edição da cartilha sobre cotas raciais do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - Ibase e do Observatório da Cidadania/2006)
Artur Pires
A
desigualdade racial no Brasil é abissal. Dependendo da pigmentação da pele, um
brasileiro pode ter oportunidades bem diversas e contrastantes. O racismo,
arraigado no seio da sociedade nacional desde a formação do povo brasileiro,
exclui e marginaliza uma parcela significativa da população do país. É sob esse
contexto que as políticas afirmativas despontam como uma necessidade premente.
Em uma sociedade
como a brasileira, onde as faces do racismo se mostram das mais variadas formas
e estão imiscuídas dentro das relações sociais, as cotas raciais se apresentam
como um paliativo necessário. “Apesar das críticas contra a ação afirmativa, a
experiência das últimas quatro décadas nos países que a implementaram não
deixam dúvidas sobre as mudanças alcançadas6” (p. 32). A partir desses
prévios conhecimentos acerca das políticas de afirmação em outros países,
poderíamos criar nosso próprio sistema de cotas, fazendo um bom proveito das
experiências acumuladas. O que a questão exige é o direito à escuta de grupos
sociais marginalizados historicamente que querem agora fazer parte das decisões
políticas, não apenas mais como meros espectadores. Esses atores sociais não
estão querendo dividir racialmente a sociedade, mas se recusam a esquecer as
marcas indeléveis da exclusão realizados há séculos5.
Dessa
forma, as políticas de afirmação visam a oferecer aos grupos marginalizados um
tratamento diferenciado para compensar as menores oportunidades devido à sua
condição de discriminados6. Esse pensamento vai ao encontro da idéia
que Guimarães4 tem das cotas: uma desigualdade que se propõe a
anular outra desigualdade. Não intervir
na forma como a realidade está posta, através das políticas afirmativas, é
favorecer injustamente grupos sociais que historicamente sempre tiveram
privilégios e garantias consolidadas.
Tudo depende das oportunidades de cada um, ou melhor, do ponto de
arrancada de cada um na grande corrida pela vida. Os “melhores”, os
“vencedores”, serão aqueles que tiverem reunido a maior gama de oportunidades
já ao nascer e ao longo da vida. Este, evidentemente, não seria o caso da
população negra brasileira, a qual tem sido vitimada historicamente pela
pobreza e pela discriminação racial inerentes ao círculo vicioso do racismo
institucional. Assim, se quisermos contrapormo-nos ao racismo subjacente e
invisível das nossas instituições, precisamos, em primeiro lugar, garantir a
criação de oportunidades para os negros brasileiros, sem o que não lhes será
possível vencer no cenário competitivo da sociedade moderna de livres e iguais
perante a lei1 (p. 214 e 215).
Ou
seja, no universo das possibilidades de acesso, já há uma desigualdade que deve
ser considerada. “Daí a justificativa de uma política preferencial no sentido
de uma discriminação positiva [...]6” (p. 34). O modernismo político
“acostumou a tratar igualmente seres e grupos diferentes ou desiguais, em vez
de tratá-los especificamente como desiguais6” (p. 36). Desse modo,
as cotas para certos grupos sociais são nada mais do que políticas que se
propõem a tentar equilibrar o quadro das garantias e vantagens sociais.
Os críticos e
refratários às cotas raciais nas universidades brasileiras, na maioria das
vezes, lançam mão de argumentos que não visam a alterar o estado das coisas.
Ademais, se negam a admitir o longo processo de exclusão do negro na sociedade
brasileira. Outra argumentação contrária é a de que as cotas sociais seriam
mais eficazes, pois atenderiam também aos brancos pobres. Não discordamos desse
segundo argumento. Mas uma política não necessariamente anula a outra. As duas
podem ser adotadas conjuntamente. Até porque num país onde os
preconceitos e a discriminação racial não foram zerados, ou seja, onde os
alunos brancos pobres e negros pobres ainda não são iguais, pois uns são
discriminados uma vez pela condição socioeconômica e os outros são
discriminados duas vezes pela condição racial e pela condição socioeconômica,
as políticas ditas universais [...] não trariam as mudanças substanciais
esperadas para a população negra6 [...] (p. 33 e 34).
“Não vejo como tratar, falando de políticas
públicas numa cultura e sociedade racista, igualmente os negros pobres e os
brancos pobres, quando uns são duplamente discriminados e outros discriminados
uma única vez6” (p. 36).
A cota é apenas um instrumento e uma medida emergencial enquanto se
buscam outros caminhos. Se o Brasil, na sua genialidade racista, encontrar
alternativas que não passam pelas cotas para não cometer injustiça contra
brancos pobres – o que é uma crítica sensata – ótimo! Mas dizer simplesmente
que implantar cotas é uma injustiça, sem propor outras alternativas a curto,
médio e longo prazo, é uma maneira de fugir de uma questão vital para [...]
milhões de brasileiros de ascendência africana e para o próprio futuro do
Brasil. É uma maneira de reiterar o mito da democracia racial, embora este
esteja desmistificado6 (p. 42).
Um terceiro
argumento lugar-comum dos críticos às cotas raciais é o de que estas vão galvanizar
a discriminação contra os negros. Ora, não há essa possibilidade, posto que as
cotas não têm como estimular os preconceitos raciais, uma vez que estes já se
encontram arraigados na cultura e na psique coletiva do povo brasileiro. A
função das cotas é outra - e muito bem demarcada: oportunizar condições a uma
parcela da população que sempre se deparou com as portas fechadas para sua
inserção e mobilidade social.
É importante deixar claro que somos todos brasileiros, mas de cores
diferentes e se essas diferenças têm servido como critério para que profundas
desigualdades sociais sejam mantidas em termos estruturais e reproduzidas em
nosso cotidiano, são as desigualdades que devem ser combatidas, não as
diferenças, essas só nos enriquecem8
(p. 49).
(Ilustração: Material do Coletivo Nacional da Juventude Negra - Enegrecer)
Em suma, a
implantação das cotas para negros nas universidades – e também em outras searas
da sociedade brasileira – como um programa político de abrangência nacional
funcionaria, desse modo, como uma política de reparação a séculos de exclusão
social. Essa é uma dívida histórica que o Brasil tem com sua população negra. “[...]
A ação afirmativa corresponde, enfim, aquelas ações de natureza imediata que
visam corrigir ou atenuar os efeitos de uma história de longo termo2”
(p. 216). A “questão da implementação de cotas raciais é uma forma de política
para a correção das desigualdades no Brasil8” (p. 49).
A aplicação de ações afirmativas visaria à igualdade no plano dos
direitos entre grupo, e corresponderia a tratamentos preferenciais concedidos a
indivíduos pertencentes a certos grupos (de raça ou gênero) precisamente para
compensar a discriminação no passado, que termina ela mesma por ser
instituidora das desigualdades do presente9.
Conclusões
Pensar em soluções e alternativas para exterminar a praga
do racismo na sociedade brasileira é uma tarefa árdua e espinhosa. Muito devido
ao fato de que essa visão racista do brasileiro está arraigada em sua identidade
enquanto povo. O povo brasileiro é racista hoje por uma construção social
maquiavelicamente engendrada séculos atrás. Na constituição de nossa sociedade,
teorias racistas que atestavam o negro como inferior e propenso à submissão –
mas também à violência - foram incorporadas às relações e comportamentos
sociais para nunca mais saírem.
Hoje, ainda que quase ninguém se autodeclare racista, esse
preconceito subsiste na psique coletiva das pessoas. O estudo realizado com
crianças na Universidade Federal de Sergipe, que apresentamos no texto anterior,
mostra o quão racista é a nossa sociedade, posto que até mesmo pequenos
brasileiros de 5 a
8 anos já apresentam rejeição à figura do negro, mesmo sem terem o mínimo
conhecimento sobre conceitos de “raça”, racismo, preconceito, discriminação
etc.
Considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados
no inconsciente coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão
onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que
codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens
capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas
representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na
estrutura profunda do nosso psiquismo7 (p. 19).
Além dessas técnicas inovadoras e de uma linguagem capaz
de imiscuir-se no imaginário e nas representações coletivas que as pessoas têm
do racismo, faz-se de extrema importância “fortalecer a formação e reatualização
de uma consciência negra, em cada país que carrega na sua história um passado
assinalado pelo escravismo colonial2” (p. 217). Essa é “uma
estratégia importante em um mundo onde o racismo, os preconceitos e a
discriminação existem efetivamente2” (p. 217).
Mas o que vem a
ser a “consciência negra”? O que esse conceito tem a nos dizer sobre a luta
pela superação do racismo? Qual, de fato, a sua eficácia nessa contenda? Consciência negra é construir uma identidade negra em um mundo dentro do
qual o racismo – outra construção – existe de modo explícito ou encoberto. É
construir a identidade negra como diferença, e exigir que esta diferença seja
percebida sem desigualdade. É dotar essa identidade de força política, de valor
social, de pujança cultural2 (p. 221).
É dentro dessa visão de autoafirmação da “raça” negra com
uma construção sociológica – e não mais biológica - que surge também a noção de
identidade negra. É ela que vem fortalecendo a luta do movimento negro em todo
o país. O conceito de identidade negra
vem trazendo em seu bojo a revalorização da cultura milenar negra, dos seus
costumes, das suas origens. Esse resgate histórico-cultural da negritude tem
contribuído decisivamente para cavar espaços de inserção sócio-políticos antes
inimagináveis - vide a Lei 10.639, de 2003, que obriga todas as escolas
brasileiras, de nível fundamental e médio, a adotar em seus currículos
disciplinas que contemplem a cultura e a história afro-brasileira, para além
dos clichês habituais.
[...] O suporte para esta “identidade negra” que vem se fortalecendo nas
décadas recentes – para além de sua belíssima história em termos de realizações
culturais e da tradição de suas lutas – é o fato que, passado um século, para
muito além de suas diversidades internas, este imenso contingente humano é
freqüentemente visto e tratado pelos poderes instituídos e dominantes, ainda
que subliminarmente, como uma mesma coisa, como o não-branco, o seu “outro”, um
contraponto com o qual se tem de conviver, o receptáculo de preconceitos que
por vezes não podem ser contidos mas que também não devem ser explicitados.
Assim, diante deste jogo de poderes e micropoderes que querem a contrapartida
de uma resistência, e à parte uma rica diversidade interna a ser reconhecida,
os diversos grupos que se assumem como portadores da negritude não deixam de se
reconhecer nesse ‘eixo de equivalência comum2’ (p. 210).
Em suma, é imperativo somar a noção de identidade negra às
novas linguagens e técnicas que visam a transformar o imaginário coletivo
brasileiro. Juntas, essas alternativas podem arrostar o racismo da sociedade
brasileira e promover um processo contra-hegemônico, aos moldes gramscianos*,
que suplantaria as práticas de preconceito racial. Enquanto isso não ocorre,
urge que medidas paliativas sejam tomadas no sentido de igualar as
oportunidades às diversas etnias brasileiras. É nesse sentido que as políticas
de ação afirmativas para negros são extremamente necessárias, uma vez que o
país ainda tem um longo e pedregoso caminho a percorrer para equalizar seu
imenso fosso racial.
PS: Boa dica para quem quer se inteirar mais sobre a agenda negra no Brasil é consultar o Observatório da População Negra.
____________
*.
Para o filósofo
italiano Antonio Gramsci, a hegemonia seria a direção moral e intelectual de
uma sociedade, onde a dominação é auxiliada pela instauração do consenso. O
poder de coesão, conectado ao consenso, constituiria o predomínio de uma visão
social de mundo e de convívio social. O espaço da hegemonia é a sociedade
civil, portanto. Então, de acordo com Gramsci, a melhor estratégia para a
construção de uma outra organização social seria a chamada guerra de posição,
em que as classes subalternas disputariam a direção moral e intelectual da
sociedade. Às classes subalternas, se
integrariam os intelectuais orgânicos,
que seriam, pois, os ativistas que encampariam, junto àquelas classes, o
fomento de uma nova visão de mundo, de uma nova cultura, que se oporia aos
intelectuais organicamente ligados à classe dominante, ou seja, a luta
contra-hegemônica se iniciaria.
1. AZEVEDO, Célia Marinho de. Cota
racial e Estado: Abolição do racismo ou direitos de raça? In: Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p.
213-239, jan./abr, 2004b. [http://www.scielo.br/pdf/%0D/cp/v34n121/a10n121.pdf]
2. BARROS, José D´Assunção. A
construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da sociedade
brasileira. Petrópolis, Vozes, 2009.
3. _________. Os
intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995.
4. GUIMARÃES, A . S. A Desigualdade que anula a desigualdade: notas sobre a ação afirmativa no Brasil. In: SOUZA, J. (org.). Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos. Brasília: Ministério da Justiça, 1996, p.233-242.
5. LEITE, Ilka Boaventura. Humanidades insurgentes: conflitos e criminalização dos quilombos. Paper, 2007.
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